Barbatimão: aliado de pesquisadores no tratamento da úlcera do pé diabético

13/06/2019


Por Andréa Moura

Há 35 anos o ‘habitat’ de Silvaneide Soares, mais conhecida como galega das ervas, é o mercado Antônio Franco, localizado no centro comercial de Aracaju, capital de Sergipe, espaço tradicional entre os sergipanos por abrigar produtos naturais e peças do típico artesanato regional. Galega seria como uma “enciclopédia” dos chás e ervas medicinais, a que muita gente sempre recorre quando precisa de uma indicação sobre qual o melhor chazinho para aliviar algum tipo de mal-estar.

“Conheço de um tudo aqui, minha filha”, garante ela. Por isso, quando questionada sobre o que ela indicaria para ajudar na cicatrização de feridas, de pronto responde: ‘babatimão’ minha flor. E completou: “neste momento, na minha banca, é o que tenho de mais indicado para inflamação e para fechar qualquer ferimento que a pessoa tiver. Pode fazer o chá e beber, se banhar, ou fazer o sumo da casca e colocar no local que deseja curar”, orientou. Na banca da ‘Galega das ervas’, um pacote com aproximadamente 200 gramas do produto custa R$ 3.

Silvaneide Soares, a

Silvaneide Soares é o típico exemplo de quem utiliza a sabedoria popular sobre o uso medicinal das plantas em prol da melhoria do corpo, conhecimento que é passado de geração em geração e que tem norteado muitos estudos científicos dentro de laboratórios país afora.

E foi seguindo essa linha de conhecimento dos mais antigos e após ouvir vários depoimentos sobre as maravilhas que o barbatimão oferece, que pesquisadores do Instituto de Tecnologia e Pesquisa (ITP), com sede em Aracaju, capital de Sergipe, decidiram analisar a espécie e saber, realmente, quais as propriedades medicinais que a planta possui e se elas poderiam ser utilizadas para acelerar a cicatrização das úlceras do pé diabético.

O resultado das inúmeras horas dedicadas ao assunto desde o ano de 2013, quando o projeto de pesquisa iniciou, foi o desenvolvimento de um extrato de barbatimão para ser aplicado em membranas à base de colágeno sobre a área ulcerada.

O extrato é carreado em membranas porque elas são uma solução tecnológica com baixo custo de produção e reabsorvíveis pelo próprio organismo, o que as tornam, consequentemente, mais higiênicas. A depender do tipo e extensão da ferida ela não precisa ser trocada diariamente, o que promove maior aproveitamento do medicamento utilizado, pois, é liberado lentamente à medida que a membrana vai sendo decomposta.

 

 "O BARBATIMÃO SERVE PARA INFLAMAÇÃO E PARA FECHAR QUALQUER FERIMENTO QUE A PESSOA TIVER" - Galega das ervas.

 

As análises do barbatimão mostraram bem mais do que a ação cicatrizante descrita na literatura e de domínio do conhecimento popular. Além de reduzir inflamações, o barbatimão também é antimicrobiano, anticolagênico e analgésico, características que de acordo com o Dr. Ricardo Luiz Cavalcanti de Albuquerque Júnior, pesquisador do Laboratório de Morfologia e Patologia Experimental do ITP (LMPE) e um dos coordenadores da pesquisa, são importantes demais para o tratamento de feridas do pé diabético, um dos graves problemas de saúde pública enfrentados pelo Brasil. Os estudos foram realizados em parceria com pesquisadores da Universidade Estadual de Maringá, no Paraná, onde também já havia trabalho sobre a planta.

O Dr. Ricardo Albuquerque explica que a linha de pesquisa com membranas vem sendo trabalhada no ITP há cerca de dez anos, sempre buscando soluções para problemas na área da saúde. O que muda, segundo ele, é o alvo-terapêutico e a substância que vai contida nela. “A escolha é feita por meio de levantamento etnofarmacológico de uma série de produtos regionais com potencial terapêutico, e que já era descrito pela sabedoria popular, a exemplo do Stryphnodendron adstringens, popularmente conhecido como barbatimão”, comentou. A pesquisa foi iniciada há cerca de seis anos e ao longo desse tempo recebeu financiamento da Capes, da Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (Fapitec/SE), do Banco do Nordeste do Brasil e do CNPq.

  

DE IN VITRO PARA IN VIVO

Passada a fase de testes in vitro e que confirmou a expectativa de que o barbatimão poderia contribuir demasiadamente para a melhoria da qualidade de vida de pacientes com úlceras do pé diabético, a próxima fase dos estudos foi a aplicação da membrana contendo o extrato do produto em modelos animais. Por causa da excelente resposta obtida nesta segunda fase, o grupo de pesquisadores decidiu avançar e pediu liberação do Comitê de Ética em Pesquisa para a realização dos ensaios clínicos, ou seja, para a aplicação das membranas contendo extrato de barbatimão em pessoas com feridas do pé diabético.

Os ensaios clínicos foram iniciados em novembro de 2018 em nove pacientes que estavam sendo atendidos exclusivamente pelo SUS nas Unidades Básicas de Saúde do município de Aracaju. Esta parte da pesquisa é coordenada pela enfermeira Maria Paula Reis Futuro, e ela explica que os pacientes foram divididos em quatro grupos: os que utilizam o medicamento preconizado pelo Ministério da Saúde para o SUS; os que utilizam um hidrogel referenciado no mercado; os que estão sendo tratados apenas com as membranas desenvolvidas no ITP, sem qualquer tipo de produto inserido nelas; e o grupo que recebe a aplicação da membrana contendo o barbatimão.

Dr. Ricardo Albuquerque

“As respostas apresentadas pelos pacientes do grupo com barbatimão são animadoras, pois estão tendo rapidez na cicatrização das feridas e em uma escala maior que os demais grupos. Percebemos isso facilmente porque padronizamos o tipo de tecido das feridas para que os pacientes dos ensaios clínicos pudessem ficar em situação semelhante e, desta forma, não haver discrepância nos resultados. Em um dos atendidos, por exemplo, a ferida foi fechada completamente antes mesmo dos três meses de duração do ensaio”, comentou a enfermeira.

Como os ensaios clínicos têm confirmado os testes anteriores com grande eficiência e eficácia, o Dr. Ricardo Albuquerque afirma que os próximos passos dados serão no sentido de encontrar, no setor produtivo, parceiros para transferir a tecnologia e ela ser produzida em larga escala para ajudar a quem sofre com as úlceras de pé diabético.

 

 SENTINDO NA PELE...

"ESTAR NA PESQUISA TAMBÉM ME TROUXE OUTROS BENEFÍCIOS. AGORA CONSIGO CONTROLAR A GLICEMIA E PERDER PESO, GRAÇAS ÀS ORIENTAÇÕES QUE RECEBI” - paciente integrante do ensaio clínico

Após selecionados, os pacientes passam a ter a situação de saúde monitorada semanalmente para saber se estão evoluindo, de que maneira e o quanto estão evoluindo. Parte desse acompanhamento é feito por meio de formulário específico onde estão descritas informações importantes sobre o indivíduo, como por exemplo, os medicamentos dos quais faz uso, se é hipertenso, tabagista, qual o Índice de Massa Corpórea, se está com sobrepeso e, uma das informações mais importantes: se tem conseguido manter a glicema abaixo de 200 mg/dl.

Por ter um aspecto amplo, a pesquisa também leva em consideração as condições fisiopatológicas do pé diabético, que, de acordo com a profissional de saúde, atrasam o processo de cicatrização “até por existirem outros fatores que influenciam diretamente neste procedimento de melhora”, frisou. A troca dos curativos é feita diariamente, e aqueles que não possuem mobilidade suficiente para irem até a unidade de saúde recebem o acompanhamento da enfermeira Paula Futuro em casa.

Um dos pacientes selecionados é uma senhora de 42 anos de idade, moradora do bairro Getúlio Vargas, localizado na região central da capital sergipana. Há dez anos ela vem sofrendo, cotidianamente, em virtude das consequências do pé diabético. Diagnosticada aos 20 anos com diabetes, ela conta que até os 32 teve uma vida normal e economicamente ativa, pois trabalhava como auxiliar de limpeza. Tudo mudou após furar o pé direito em um prego durante a faxina na pizzaria onde era empregada. Esse episódio fez surgir a primeira úlcera e, ao longo de dez anos e após algumas cirurgias, apenas o dedão não foi amputado.

O último procedimento do tipo a que ela foi submetida ocorreu há aproximadamente seis meses, e foi por causa dele que a paciente ingressou no ensaio clínico e está no grupo que recebe a membrana com extrato de barbatimão. “Aceitei participar porque minha irmã disse que seria bom para mim, e realmente está sendo. Pela primeira vez uma ferida minha fechou bem rápido. Das outras vezes que passei por cirurgia demorou muito para sarar e eu não conseguia caminhar direito como agora. Estar na pesquisa também me trouxe outros benefícios, agora consigo controlar a glicemia e perder peso, graças às orientações que recebi”, declarou a paciente.

Mesmo conseguindo andar, ela recebe o tratamento em casa, pois a distância entre a residência dela e a unidade de saúde do bairro é considerável. Como a cicatrização está bem acelerada, o curativo e a troca das membranas passou a ser feita a cada dois dias. “Essa é outra característica positiva do material: possibilita a redução dos custos, inclusive para o paciente, que muitas vezes tem que fazer os curativos em casa e arca com as despesas do que é utilizado, quando o SUS não consegue prover o material, que não é barato”, observou Paula Futuro.

Com dez anos de profissão e já tendo atuado em unidades hospitalares, onde, segundo ela, acompanhou diversos pacientes com o mesmo problema, a enfermeira alerta que uma ferida de pé diabético pode ser a porta de entrada para graves infecções, por isso, o tema requer atenção e cuidado redobrado. “A ferida crônica impede que o paciente tenha uma vida saudável, normal, e afeta, inclusive, as relações sociais. É algo que gera sofrimento e prejuízos de diversas ordens, não só para quem a tem, mas também para a família que acompanha a situação”, observou a enfermeira.

 

MEMBRANAS FAZEM SUCESSO NO MEIO VETERINÁRIO

Uma picada de aranha dentro da residência onde mora fez com que Bob - nome fictício dado para um cãozinho real com quatro anos de idade - apresentasse problemas neurológicos e desenvolvesse uma ferida com necrose em praticamente toda a barriga.

O acidente doméstico ocorreu no mês de fevereiro de 2019, período em que a Doutora Viviane Portela, médica veterinária de uma clínica escola localizada em Aracaju, já estava em contato com os pesquisadores do ITP com o intuito de fazer testes de uso da membrana com extrato de barbatimão em animais.

“Bob foi o primeiro paciente em quem aplicamos as membranas e confesso que o resultado foi simplesmente maravilhoso. Uma ferida com as características e a extensão como as que ele apresentava, mesmo em um animal com tutor e bem tratado, dificilmente sararia em menos de quatro meses se utilizássemos os medicamentos de costume para a situação. Com as membranas Bob ficou curado e recebeu alta médica em apenas um mês, e outro detalhe, com uma cicatriz limpa, sem queloide, o que nos deixou ainda mais positivamente impressionados com o produto”, observou a doutora.

A recuperação total de Bob aconteceu em um mês, três meses a menos que o tempo habitual para o tipo de problema que ele teve

Por ser pesquisadora e estar sempre em contato com outros grupos de pesquisa, Dra. Viviane Portela disse ter ouvido falar sobre a pesquisa desenvolvida no ITP e se interessou pelo assunto, porque, segundo ela, na veterinária existe uma casuística alta de feridas em decorrência de acidentes automobilísticos envolvendo animais.

Esses acidentes geram, na maioria dos casos, perda excessiva de pele e até mesmo alto índice de necrose em decorrência do atraso na prestação dos socorros devidos por parte dos tutores. “Também por causa dessa contaminação e necrose acabam se tornando cicatrizações difíceis e que, na maioria das vezes, deixam sequelas”, frisou a médica veterinária.

Em parceria com os pesquisadores do ITP, Dra. Viviane Portela ampliou o estudo original, que tinha como foco as feridas do pé diabético e agora também passa a analisar o comportamento da tecnologia desenvolvida em feridas animais.

“O tratar de úlceras em animais, como cães, ainda tem um agravante que pode ser fator complicador da situação, que é o comportamento instintivo do animal em, por exemplo, lamber a área doente. Isso conta negativamente porque pode ajudar no processo de contaminação. Usando as membranas percebemos que elas também controlam essa contaminação”, observou a médica veterinária.

Embora o tratamento de animais vítimas de acidentes automobilísticos fosse a primeira ideia de grupo para aplicação/teste da tecnologia, casos de pacientes como o Bob e o Zé, outro cão que desenvolveu abcesso e extensa ferida necrosada no dorso do corpo, na região compreendendo desde a parte superior da inserção da cauda até o pescoço em virtude de uma reação medicamentosa, passaram a figurar como ideais para a aplicação da membrana com barbatimão.

Dra. Viviane Portela estima que no início deste segundo semestre as membranas sejam aplicadas de forma experimental em animais que serão castrados em mutirão que será realizado em parceria com a prefeitura da capital sergipana. “Será experimental porque faremos o estudo dos grupos comparados, como tem sido realizado nos ensaios clínicos com humanos. Os animais serão divididos em grupos: apenas membranas, membranas com extrato de barbatimão, e medicamento preconizado pelo hospital veterinário. O foco principal será avaliar, comparativamente, tempo de cicatrização e a qualidade desta”, comentou a coordenadora deste “braço” da pesquisa.

Para ela, as membranas com barbatimão têm comprovando a eficácia que possuem e confessa que tem a esperança de que, em um curto espaço de tempo, este material possa estar sendo comercializado para poder oferecer qualidade de vida àqueles que sofrem com feridas crônicas, sejam humanos ou animais.

 

O PÉ DIABÉTICO NO BRASIL

Em Sergipe, as amputações em decorrência do pé diabético são realizadas no HUSE

Estima-se que no Brasil, aproximadamente um quarto dos pacientes com diabetes desenvolverão úlceras (feridas) nos pés, e que 85% das amputações de membros inferiores ocorrem em pacientes portadores da doença. De acordo com a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), a polineuropatia diabética (PND), uma complicação que afeta 50% dos pacientes, é o fator causal mais importante para as úlceras nos pés diabéticos. Ela leva à insensibilidade e, nos estágios mais avançados, a deformidades.

“A tríade PND + Deformidades + Trauma é fator determinante para o chamado pé diabético, caracterizado por ulceração complicada por infecção e que pode evoluir para amputação, principalmente se há má circulação sanguínea. Outros fatores que colocam a pessoa em mais alto risco são: doença renal do diabetes, retinopatia diabética, condição socioeconômica baixa, morar sozinho e inacessibilidade ao sistema de saúde”, informa a SBEM.

Matéria veiculada pelo jornal Correio Brasiliense no ano passado, mostrou que até o mês de agosto de 2018 o Brasil já tinha registrado 5.566 amputações provocadas por pé diabético, gerando, até aquele momento, um gasto de R$ 6,5 milhões para a saúde pública. No ano de 2017 foram 12.748 amputações decorrentes da doença e um custo de R$ 14,7 milhões. Pela definição do Ministério da Saúde, pé diabético são feridas que podem ocorrer no pé das pessoas com diabetes e têm difícil cicatrização, em virtude dos níveis elevados de açúcar no sangue e/ou circulação sanguínea deficiente, sendo uma das complicações mais comuns do diabetes mal controlado.

Em Sergipe, no ano de 2018, o Ambulatório de Feridas do Centro de Especialidades Médicas de Aracaju (Cemar), unidade referenciada no Estado para o tratamento dos pacientes com pé diabético atendeu 4.477 pessoas, sendo 2.423 homens e 2.054 mulheres. Deste total, 120 foram encaminhadas para o Hospital de Urgência de Sergipe (HUSE) para serem submetidas à cirurgia de amputação, parcial ou total, do pé.

No primeiro trimestre de 2019 foram atendidos 1.460 pacientes, sendo 708 homens e 752 mulheres. Quarenta e oito pessoas foram encaminhadas ao HUSE para amputação. Estes dados foram passados pela secretaria municipal da Saúde de Aracaju, órgão ao qual o Cemar está ligado e, mesmo sendo números altos, podem não retratar fidedignamente o problema em Sergipe, pois, não há garantia de que todos os pacientes com pé diabético do Estado vieram à capital para serem acompanhados por profissionais de saúde.



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