"Chama de macho. Melhor pra nós dois"

07/06/2018


Certo dia estava na Orla de Aracaju com uma amiga, quando passou um conhecido de braço dado com a esposa. Ele fez um aceno com a cabeça e eu retribuí cumprimentando ambos até porque eu a conheço também. Eles seguiram, os cães ladraram e a caravana passou. No mesmo dia, à noite, recebi pelo direct de uma rede social uma mensagem do dito cujo perguntando se eu ainda estava na orla, pois ele iria me chamar para tomar a saideira. Educadamente respondi que não estava mais e que ficaria para outra ocasião. De pronto recebo outra mensagem perguntando se no dia seguinte eu teria compromisso, e me convidando para, depois das 22h, ir tomar uma ‘cervejinha’.

Controlando minha indelicadeza e já querendo dar uma aliviada na história, porque não sou meteorologista, mas consigo prever tempo ruim, enviei apenas um: “migo, amanhã te respondo, pode ser? E eis que a melhor parte da conversa vem agora. “Vc quem manda. Mas sem migo. Chama de macho. Melhor pra nós dois” (sic). Ô gente, juro senti um misto de tanta coisa ruim, que se minha energia naquela hora pudesse atravessar o celular a criatura morreria eletrocutada do outro lado. Já deu pra perceber que a cerveja empedrou no freezer e que nem resposta eu me dei ao trabalho de enviar. A esta “altura” da minha vida e com o tico de maturidade que consegui, me dou ao luxo de ter preguiça de certas coisas e pessoas também, ainda mais se for o belíssimo exemplar de um machista.

Este conto, que não é da carochinha, é somente a introdução para um assunto batido, rebatido e triturado, mas que sempre vai precisar ser abordado porque somos pais, mães, irmãos, primos, madrinhas, padrinhos, enfim, somos alguém que vai influenciar, nem que seja com dez centavos de bom senso em algum momento da vida, o jeito que alguém vai pensar no futuro e, sendo assim, eu peço, por favor: não criemos homens achando que se uma mulher desejar a ele um bom dia, ou o tratar com educação, afinal de contas é assim que todo ser humano deve ser tratado, pelo menos em princípio – porque tem gente que só pela misericórdia, né? - é porque está querendo ir para a cama com ele! Não, ela não está!

É absurdo chegar ao ano de 2018 e tropeçar em cidadãos grotescos que tratam mulher como qualquer coisa, inclusive aquela a quem ele teve o cinismo de jurar, diante do altar, que iria amar, respeitar e blá blá blá. Não é para achar natural que um ser do gênero feminino seja visto apenas como um objeto sexual, e pior, que pode e deve ouvir coisas que só deveriam ser despejadas pelo autor dentro do vaso sanitário. O caso é sério, porque parece que quando as coisas começam a avançar, alguém decide puxar o freio de mão e só desengrenar dando marcha a ré. Como dizem uns amigos “o bagulho tá crazy”.

 Foto - iStock/Think Stock/Getty Images

ESTUPROS E TENTATIVAS

A falta de respeito ao gênero feminino e a falsa ideia de supremacia masculina são alguns dos motivos (claro que existem outros, inclusive, que corroboram com estes) que têm causado, em quantidade vertiginosa, ano após ano, o assassinato de mulheres. Para se ter pequena noção do que estou falando, no ano de 2016, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados no Brasil 49.497 estupros e 6.548 tentativas de estupro. Como gosto sempre de fazer um “recorte” e trazer a história para o contexto do meu pequeno grande Sergipe, neste mesmo ano foram registrados 541 estupros e 51 tentativas de...  

Não é preciso dizer que a quase totalidade dos casos tinha como vítimas mulheres. O número é alto, sim, muito, mas digo sem medo de errar que não reflete a realidade, pois há ainda, e infelizmente, muita subnotificação porque no Brasil a “cultura do estupro” diz que a culpa pela violência é da vítima e esse preconceito faz com que muitas se calem, por vergonha. Vergonha que é estimulada por decisões como a do magistrado do estado de São Paulo que não viu “constrangimento tampouco violência” quando um cidadão pôs o pênis para fora, se masturbou e gozou em uma mulher que estava sentada dentro de um ônibus do transporte coletivo.

Em 2017 foram registrados no país 4.473 homicídios dolosos de mulheres, sendo que 946 foram resultantes de feminicídio, palavra que define, grosseiramente, o assassinato de mulheres em contexto marcado pela desigualdade de gênero, é, de novo, a tal história da supremacia masculina, do domínio, da posse total e irrestrita da vida da outra pessoa. Em 2016 a quantidade de casos de feminicídio foi de 812. Repito que acredito que tais números não refletem a realidade. O fato é que nem mesmo a Lei Maria da Penha, em vigor há 12 anos, conseguiu “segurar a onda”.

Aumentaram as notificações, as mulheres perderam mais o medo de denunciar os agressores, porém, em contrapartida, não conseguem no sistema público de Segurança a proteção necessária para seguirem as vidas com tranquilidade. Leis que vêm sendo muito questionadas dão à vítima o direito a uma medida protetiva que diz que ao agressor: mantenha dela uma distância de 500 metros, mas ele não só chega perto, como ainda agride, ou mata. Tudo isso colocou o Brasil no sétimo lugar de um relatório da OMS que elencou as nações mais violentas para as mulheres. Detalhe: a lista possui 83 países. Tá bom? Mas, lembremos que a violência não é apenas física! Ela é verbal, é psicológica, é moral. É escancarada e é mascarada, como as que acontecem na roda de amigos, na rua, dentro do ônibus. É aquela cantada escrota, é a piadinha sobre o cabelo, a cor do batom, a calça jeans. Então, você estaria falando sobre feminismo, afinal?

CASA SEM ALICERCE DESMORONA

Não, não é este o foco, pelo menos não agora. Estou falando de algo que deve, ou deveria ser bem anterior a qualquer movimento de classe, de grupo. Estou falando de respeito, de empatia, de compaixão no sentido mais puro da palavra, de igualdade, de educação, de oportunidade de acesso, de base, de coisas que são necessárias para o bom desenvolvimento de qualquer Nação que se respeite e respeite a população. Coisas primordiais de um país que não esteja agonizando por causa de uma infecção generalizada que começou há anos com a corrupção do sistema público, mal que se tornou incontrolável, criou metástase e cada dia mata um pouco mais a dignidade e o próprio povo.

A violência contra a mulher – e outros cânceres sociais - poderia ter índices muito menores se o Brasil tivesse e fornecesse uma boa e igualitária base para todos: na saúde, na educação, na assistência social, emprego e lazer, dentre outras necessidades primordiais e que constam na Constituição Federal como direitos fundamentais.

A Organização Mundial da Saúde já classificou a violência contra as mulheres, particularmente a realizada pelos parceiros e a violência sexual, como grande problema de saúde pública e de violação dos direitos humanos. Disse ainda, em uma folha informativa específica sobre o assunto, que entre os fatores associados ao aumento do risco de perpetração deste problema estão “a baixa escolaridade, maltrato infantil ou exposição à violência na família, uso nocivo do álcool, atitudes violentas e desigualdade de gênero”. Já os fatores associados ao aumento do risco de ser vítima de parceiros e de violência sexual estão a baixa escolaridade, exposição à violência entre os pais e abuso durante a infância.

É preciso vontade, mas não só vontade da vítima em denunciar, em se libertar do cárcere que na grande maioria das vezes não tem grades físicas nas portas e janelas, nem algemas nos punhos. É preciso que o sistema tenha vontade em libertá-las, em protegê-las, em mudar paradigmas, em oferecer condições para que as gerações futuras possam ser melhores que as atuais. É preciso educação, é preciso entender, dizer e ensinar que ninguém é dono de ninguém, que somos parceiros e que estamos no mundo para caminhar juntos, para construir juntos e que tudo tem que ser bom e eterno o tempo que durar.



Comentários

Enio Moraes Júnior comentou:
Excelente texto, Andrea. Como sempre, uma escrita impecável embalando uma denúncia muito importante!!!
Monica comentou:
Parabéns
Régia Britto comentou:

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