CRÔNICA - A despedida

08/11/2021


*Janaína Cruz

Mal o alarme soou o primeiro toque e Yasmin deu um pulo da cama. Em dias “normais”, geralmente, não era assim. A soneca era ativada três, quatro, até cinco vezes. Mas aquele 5 de novembro de 2021 não era um dia normal para a adolescente. Depois de meses trancada em casa, por conta da pandemia, era a primeira vez que ela voltaria a sair com as amigas. Mais que isso, seria seu primeiro show. E não era qualquer show. Era o da rainha da sofrência. 

O cheirinho do café a levou direito para a cozinha. Na mesa, pão quentinho e bolo que a mãe tinha feito no dia anterior. De chocolate, seu preferido. A felicidade estampada no rosto da filha alegrou também a mãe. 

- Mãe, a senhora pode me adiantar aquele dinheiro que prometeu para o meu aniversário? Ainda faltavam 15 dias para Yasmin comemorar o tão sonhado 18 anos. 

- Minha filha, tô tão apertada. Já não dei seu presente?

- Que presente?

- Olha só, que memória curta… O ingresso do show que você pediu.

- Ah, foi mesmo.

Cabisbaixa, deu apenas uma mordida no pão e largou o café na xícara. A mãe não aguentava aquele biquinho que Yasmin fazia, desde criança, quando queria alguma coisa. 

- É pra que mesmo esse dinheiro?

Yasmin mudou o semblante na mesma hora. Uma pontinha de esperança encheu seu coração. 

- É que eu queria justamente comprar uma roupa nova pro show. Vá mãe, eu sei que a senhora tá no limite. Prometo que não te peço mais nada… Este ano.

Não demorou cinco minutos e Yasmin já fechava o portão de casa. Saiu toda feliz para comprar a tal roupa. Certamente, algum jeans rasgado com cropped. Avisou para a mãe que de lá mesmo iria para a escola. Não precisava a esperar para o almoço. 

A adolescente chegou em casa por volta das quatro da tarde. A professora da última aula faltou. Uma alegria para qualquer estudante. Melhor, pensou Yasmin, vou ter mais tempo para me arrumar com calma. Com a roupa nova garantida, a maquiagem para combinar com o look já tinha sido planejada durante à tarde. 

Yasmin abriu a porta e jogou a mochila numa poltrona no canto da sala, como era de costume. Chegou cantarolando a música que mais gostava e que estava torcendo para Marília Mendonça incluir no show de logo mais. “Não diga que não tô falando com você, eu tô parado no meio da rua”... Nem completou o resto. Levou um susto quando viu a mãe parada no sofá, mal piscava. A TV ligada e a imagem de um jatinho caído numa cachoeira. 

- O que foi isso, mãe?

A mãe, por sua vez, só olhou para a menina e não conseguia falar. 

Ainda em pé, Yasmin leu a tarja: avião com Marília Mendonça cai no interior de Minas. O coração gelou. Desabou no sofá na mesma velocidade que o jatinho naquela cachoeira. Lugar que, inclusive, ela ia sempre com os amigos, com a família. Correu para o quarto e pegou o celular. Foi conferir o Instagram da cantora. 

Algumas horas antes, ela tinha postado uma cena do embarque e um vídeo bem-humorado, fazendo piada com a dieta e as delícias mineiras que certamente não poderia comer. Yasmin logo prestou atenção na roupa, um conjunto de saia e blusão, com quadrados branco e preto, e detalhes laranja, rosa e amarelo no acabamento. Outro detalhe observado pela menina é que a cantora estava sentada bem na saída de emergência. 

Na TV diziam que a assessoria da cantora havia emitido uma nota informando que ela estava bem. Na cabeça da garota pairavam mil perguntas. Quem teria salvado ela? Por que, nesse tempo de informação instantânea, ninguém tinha postado um vídeo dela chegando no hospital ou algo assim? Yasmin e a mãe ficaram ali paradas, as duas em silêncio. 

De repente, na imagem, aparece um corpo sendo coberto com uma manta laminada. Naquele instante, o coração de Yasmin quase saiu pela boca. Um pedacinho descoberto mostrava uma roupa de quadradinhos. Não podia ser. A primeira lágrima escorreu e tantas outras jorraram. A mãe também viu a cena e entendeu o desespero da filha. As duas se abraçaram e, logo em seguida, o repórter anunciou que os bombeiros haviam confirmado a morte de Marília Mendonça. 

À noite, aos poucos, a praça de Caratinga foi ficando lotada. Velhos, jovens, crianças. Muita gente, assim como Yasmin, com ingresso do show na mão. Todas aquelas vozes se uniram para a última homenagem à cantora. Parecia até um coral muito bem ensaiado. Yasmin e a mãe ficaram ali, no meio da multidão, um bom tempo. Porque, afinal, “ninguém vai sofrer sozinho, todo mundo vai sofrer”.

 *Janaína Cruz é jornalista formada pela Universidade Federal de Sergipe,

amante de um bom papo, MPB e cultura popular, itens que, atralelados

à curiosidade nata, dão o tom dos textos que escreve.



Comentários

Reuben comentou:
Apesar de saber o final desta triste história, a narrativa nos prende e Janaína consegue fazer com que a gente sinta as emoções de Yasmin. Parabéns!

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