CRÔNICA: Morangos
09/07/2020
*Rosimayre Oliveira
Rubem Alves conta, em uma de suas tantas histórias emblemáticas, que certa vez um homem ia feliz pela floresta quando, de repente, ouviu o urro trovejante de um leão. Ele teve muito medo e, instintivamente, começou a correr. O medo assombrou as suas pernas e elas, cambaleantes, perderam velocidade. A floresta fechada, sentindo-se invadida, empurrou o homem para dentro de um precipício.
No ápice do desespero o homem agarrou-se à raiz de uma árvore, como um condenado agarra-se à sua última fatia de esperança. Ali ficou, em segundos de eternidade, dependurado sobre o abismo. No alto, o leão rugia, esfomeado, enquanto sua vida inteira era reprisada em cenas medíocres, dignas de um filme de seção da tarde. Quantas vezes ensaiou peças que não estreou? Fugiu do voo escondendo-se debaixo de suas próprias asas? Pensava, enquanto sua cabeça girava feito um carrossel de parque mal-assombrado. O nada, a ínfima metade de uma fração simplificada. O tudo mal digerido. A mesquinhez das horas prazerosas. As gotas de vida em doses homeopáticas. Cada cena o torturava. Remexia os seus guardados.
De forma inusitada olhou para a sua frente e avistou um pé de morango na parede do precipício. Havia nele um moranguinho solitário, apetitoso e vermelho, ao alcance da sua mão. Fascinado por aquele convite inesperado, ele não hesitou e colheu avidamente aquela fruta sedutora, esquecido de tudo à sua volta. A primeira mordida trouxe-lhe a sensação de ter um mundo expandido em seus lábios. A carne macia, suculenta, escorria seu líquido adocicado pelo canto da boca. E o sabor de se saber existindo naquela possibilidade ofertada abriu as janelas da sua alma. Uma borboleta azul complementou o cenário.
Nesse momento, você poderá estar se perguntando se o homem, literalmente, caiu ou não caiu no abismo. Mas, será que isso realmente importa? Parou para pensar que talvez essa terá sido a salvação de sua vida deserta de morangos? O prazer de degustar o morango não seria superior ao perigo de cair no precipício? Penso que sim. Estamos todos pendurados em galhos de árvores sujeitos a cairmos no abismo. Mas, melhor será morrer com a barriga cheia de morangos do que salivando com a vontade de comê-los. No entanto, quase sempre o medo aprisiona os nossos desejos e nos mantém para sempre imobilizados.
Conheço muita gente que ficaria aguando de vontade de comer o morango, mas, não se arriscaria a esticar o braço para pegá-lo. São pessoas que vivem entre parênteses dentro de uma narrativa minguada. São prudentes demais, metódicas, sensatas demais e ousadas de menos. E essa talvez seja a grande diferença a separar uma multidão de pessoas comuns de outras poucas que se permitem ser seduzidas pelo cheiro, pela cor, pela textura, pelo sabor dos morangos que surgem em seus caminhos, mesmo correndo o risco de caírem no abismo. Mas, chega mais perto para eu te contar um segredo ao pé do ouvido: o protagonista desta história não olhou para baixo, portanto, não sabia que estava a poucos metros do chão.
Ele conta que...
Primeiro foi o cheiro
algo assim feito almíscar rara
substância aromática sedutora
efeito de uma química bem combinada
Cenário projetado com o vermelho
escarlate e carmesim causando efeitos fulgentes
num ambiente intencionalmente tentador
aquecido pela temperatura desejada
Gosto sem desgosto
sabor que aguça o paladar
vontade de comer até saciar
os morangos que nascem por aí
sem ninguém plantar.
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*Rosimayre Oliveira: baiana, residente no Piemonte da Chapada Diamantina, graduada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual da Bahia e Especialista em Metodologia de Ensino e Pesquisa na Educação em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Escrever é a sua forma de existir no mundo, de fazer ecoar as muitas vozes que se recusam a emudecer. E essas vozes costumam se comunicar, através de diversas roupagens gráficas que revestem prosa e poesia. Possui alguns de seus textos, principalmente poemas, publicados em Coletâneas e plataformas digitais.