CRÔNICA: Por trás das máscaras

04/06/2020


*Rosimayre Oliveira

Em Relicário, Nando Reis questiona: “O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou? O que está acontecendo”? Há vinte e três anos, portanto, parece que o mundo já estava ao contrário. Ninguém percebia? Se percebia, isso em nada alterava as nossas rotinas sob o olhar das nossas retinas. Hoje, não tem como não reparar, e desejar, que ainda seja possível haver reparos.

Quarentena. Distanciamento social. Isolamento, quando as circunstâncias assim exigem. Com todas as mudanças de comportamento necessárias para nos proteger do mal invisível, as máscaras se tornaram acessórios indispensáveis, seja para aqueles que precisam deslocar-se para trabalhar diariamente, ou para quem necessita sair um pouco de seus abrigos e ir às ruas para adquirir itens básicos essenciais.

No entanto, além do desconforto provocado pelo ar denso que nos oxigena através das duas camadas de tecidos, estampados ou lisos, a sensação é de muita estranheza. Todos estão facialmente uniformizados. Não se veem mais os batons colorindo os lábios das mulheres (emoji de espanto). As sobrancelhas, meticulosamente delineadas, perderam destaque. Cílios postiços? Puro excesso. Não se veem mais os sor-ri-sos.

E “o sorriso é a moldura do rosto”. Assim veicularam, massivamente, as propagandas odontológicas visando atrair o público e convencê-lo a aderir aos tratamentos dentários disponíveis no mercado, garantindo ao pretenso consumidor um sorriso perfeito. No momento atual terão que se reinventar. Também terão que fazê-los setores de vigilância pública ou privada que, de forma bem-humorada, sugeriam: “Sorria! Você está sendo filmado”! Ou mesmo os criadores de frases do tipo: “vestiu a felicidade e colocou o melhor batom: seu sorriso”; “Um sorriso no rosto pode transformar todo mundo a sua volta” (não duvido disso).

Contudo, nem sempre o sorriso está associado diretamente à incontida euforia da felicidade. Existem várias outras motivações para sorrir. Segundo alguns estudos há, pelo menos, dezenove outros tipos de sorriso. Dentre estes, o envergonhado: aquele discreto que deixa as bochechas enrubescidas sempre que um elogio nos surpreende e prende a nossa voz no corredor da boca; o namorador, que é sutil, misterioso, enigmático, característica marcante da Monalisa, de Leonardo da Vinci, definido por Drummond como sorriso ardiloso.

Há, ainda, os sorrisos falsos, sarcásticos, de desprezo, sorrisos maus que dançam no baile da miséria alheia, assim como o fazem os vilões de cinema (e outros tantos personagens da vida real. Duvidam? Eu não.) O cantor e compositor Orlando Silva lindamente entoou nos versos da música Sorrisos. “Sorrisos são poemas de contentamento/ mas, que também traduzem/ o horror de um sofrimento/ sorrindo quantas fez alguém a soluçar/ procura na garganta o pranto sufocar/ se o riso simbolizasse apenas alegria/ ninguém mais haveria que vivesse a sorrir/ pois, a felicidade é na realidade/ sorriso da ilusão que nos vem mentir.

Dessa forma, será que agora os sorrisos desaparecerão dos locais públicos? Ficarão restritos apenas às pessoas que convivem na intimidade de suas casas? Não os encontraremos mais nos atendentes dos supermercados, das farmácias, das feiras-livres? Depende. Embora, nesse momento estejam menos espontâneos e não aparentes, eles não deixarão de existir. Estarão codificados nos olhares. Nos múltiplos olhares. Mas, apenas serão vistos por aquelas pessoas que conseguem enxergar além do óbvio. Por aqueles que leem gestos, sentem cheiro no abstrato, gosto no olfato. Estão abertas para as portas fechadas, porém, iluminadas.

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* Rosimayre Oliveira: baiana, residente no Piemonte da Chapada Diamantina, graduada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual da Bahia e Especialista em Metodologia de Ensino e Pesquisa na Educação em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Escrever é a sua forma de existir no mundo, de fazer ecoar as muitas vozes que se recusam a emudecer. E essas vozes costumam se comunicar através de diversas roupagens gráficas que revestem prosa e poesia. Possui alguns de seus textos, principalmente poemas, publicados em Coletâneas e plataformas digitais. 

PS.: A imagem principal é de Rafael Olbinski e foi retirada do Pinterest.



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