Desenvolvimento urbano ainda não é um aliado do transporte público
30/06/2024
Por Andréa Moura
“Se a quantidade de carros em Aracaju continuar crescendo no ritmo que está, daqui há um ano será preciso ter alguma alternativa, talvez rodízio de automóveis por placa, como já acontece em outras cidades, para que os ônibus consigam fazer o trajeto dentro do tempo estipulado”. Essa observação é do motorista Márcio Celestino, que faz a linha Tijuquinha, bairro de São Cristóvão, na região da Grande Aracaju.
Márcio tem 46 anos de idade, e há 11 trabalha como motorista do transporte púbico de passageiros. Atualmente, o horário de trabalho é das 5h40 às 13h30, e dentro dessa “janela” ele enfrenta a lentidão do trânsito em alguns horários de pico e vias engarrafadas, já que no trajeto que realiza está a Avenida Desembargador Maynard, uma das principais vias de escoamento da zona Norte/Oeste da cidade.
“Infelizmente a Desembargador não possui faixa exclusiva para ônibus, o que ajudaria muito, pois é uma via por onde trafegam muitos veículos, e quando tem colisão a coisa fica pior”, evidencia.
Outra avenida que é uma pedra no sapato dos motoristas, em especial, os do transporte coletivo de passageiros, é a Tancredo Neves, principal via de ligação entre as zonas Norte e Sul da capital sergipana, e que em determinados momentos do dia registra engarrafamentos que dificultam a vida dos aracajuanos.
De segunda à sexta, no período da manhã pouco após às 8h, no sentido em direção à saída da cidade, e logo após às 17h20, nas imediações do Terminal DIA, também no sentido Sul/Norte, trafegar pela Tancredo é um teste de paciência para os motoristas por causa de congestionamentos frequentes, mesmo que não tenha havido acidente na via.
Há quem atribua os congestionamentos ao elevado número de veículos na cidade, fator que realmente deve ser levado em consideração, já que Aracaju possui, segundo dados do Departamento Estadual de Trânsito (Detran/SE) e até o mês de maio de 2024, uma frota de 342.993 veículos, para uma população de 602.757 pessoas, ou seja, um veículo a cada dois habitantes da capital.
TEMPO É DINHEIRO
Embora seja um dos indicadores de desenvolvimento urbano, ter essa frota grande acaba gerando problemas, especialmente para quem utiliza o transporte público coletivo, que na Região Metropolitana de Aracaju (RMA) são cerca de 230 mil passageiros/dia, atendidos por uma frota de 596 ônibus, que operam as 113 linhas que cobrem a RMA, de acordo com dados do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Município de Aracaju (Setransp-Aju).
E um dos principais problemas para os usuários do sistema é o acréscimo no tempo de deslocamento, que retira dessa população horas importantes que poderiam ser usadas de maneira produtiva, tanto no campo pessoal, quanto no campo.
“Moro no Marcos Freire II, em Nossa Senhora do Socorro, e trabalho no bairro Coroa do Meio. Para poder chegar à empresa às 8h preciso estar no ponto pouco depois das 6h, e isso, ao longo da semana, é muito cansativo, e porque não dizer, estressante, mesmo, até porque tem dias que chego muito tarde em casa”, afirma o produtor audiovisual João Evangelista, de 28 anos de idade.
Quem abriu mão de usar transporte público e optou pelos veículos de aplicativo foi a Designer Clara Júlia, 23, pois segundo ela, fez as contas e percebeu que se usasse ônibus para ir e voltar do trabalho ela perderia, diariamente, um tempo precioso.
“Usava transporte coletivo durante a graduação, e mesmo morando perto de um terminal, o tempo de espera para a UFS sempre foi considerável, e quando tinha alguma obra no meio do caminho piorava muito. Agora, resido no Santos Dumont e trabalho no Distrito Industrial, e se eu utilizasse ônibus perderia entre três e quatro horas por dia, somente em deslocamento para ir e voltar do trabalho. Por isso resolvi usar carro de aplicativo, pois com ele gasto, no máximo, uma hora”, explica a jovem.
Em setembro de 2023, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) publicou um estudo técnico intitulado “Análise do impacto da frota de veículos nos municípios brasileiros”, com o foco para a área de transporte e mobilidade urbana.
O documento cita que o crescimento da frota de veículos nos municípios do país representa parte de uma visão do Poder Público, como mecanismo de fortalecimento da indústria nacional e desenvolvimento econômico, que após anos, segundo do estudo mostrou-se equivocada, pois o custo gerado com todas os pontos negativos resultantes do incentivo aos veículos nos municípios foi infinitamente superior aos ganhos auferidos com a política industrial.
APOSTA ERRADA
Para a CNM, o investimento deveria ter sido em infraestrutura e em redes integradas de transporte público coletivo de pequena, média e alta capacidade. “Só para se ter uma ideia, uma estimativa feita em 2014 por Vianna et al (2016) mostra que as perdas econômicas por problemas de mobilidade urbana estão estimadas em aproximadamente 247,2 bilhões. É um valor significativo, que poderia resolver diversos problemas de deslocamento e circulação”, cita o documento.
Ainda de acordo com o CNM, a evolução da frota de automóvel e moto exerce forte impacto no ambiente urbano, apesar da pouca capacidade de transportar pessoas.
Também afirmou, por meio do estudo técnico, que quanto mais automóveis e motos maiores serão os congestionamentos, os altos níveis de poluição ambiental, o aumento de acidentes, problemas de saúde, necessidade de altos investimentos na infraestrutura viária e consequências econômicas para toda a população que realiza deslocamentos para trabalho, estudos, lazer ou outras atividades.
O diretor Executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Francisco Christovam, alerta que além de intensificar congestionamentos, o aumento da frota de veículos particulares afeta a eficiência e a pontualidade dos serviços de transporte público, especialmente quando não há uma política de priorização do uso do sistema viário para o transporte coletivo, com a adoção de faixas exclusivas e de corredores para ônibus.
Desde agosto de 2023 que Aracaju conta com quatro corredores exclusivos para ônibus: Hermes Fontes, Augusto Franco, Beira Mar e Centro/Jardins, um investimento de quase R$ 46 milhões da prefeitura da capital, com o objetivo de garantir maior fluidez no trânsito. De acordo com números divulgados pela SMTT da capital, nesses corredores exclusivos houve uma redução média de 26% no tempo de deslocamento dos ônibus. Mas a pergunta que fica é: e onde não há “cobertura dos corredores”, como está a situação?
“Seria muito bom se no itinerário que cubro tivesse uma faixa exclusiva para os ônibus, como tem na Heráclito Rolemberg e na Hermes Fontes, porque tenho que dividir a via com carroças, pedestre, ciclista, motoqueiro e muito, muito carro, e querendo ou não, isso atrapalha um pouco sim, o nosso trabalho, além de termos que ter uma atenção redobrada”, declara a motorista Aglaci Meire dos Santos, 45 anos de idade, que faz a linha Santa Maria/Terminal DIA no período da manhã.
E aproveitando a deixa, Aglaci Meire é uma das cerca de 10 mulheres que trabalham como motorista no sistema de transporte público de Aracaju, em um universo composto por mais de 850 motoristas do sexo masculino. Ela trabalha no sistema há 12 anos, começou como cobradora, função que exerceu por nove anos antes de assumir o volante. Há três anos ela é responsável por transportar passageiros.
Sempre muito bem-maquiada e com um sorriso no rosto, ela disse estar realizando um sonho, motivada pelo convívio com o pai, que era caçambeiro, e o marido, que dirige carreta. “Amo o que faço e sou realizada na minha profissão”, afirma.
OCUPAÇÃO DESORDENADA DO TERRITÓRIO É UM PROBLEMA
Os 602.757 habitantes de Aracaju estão distribuídos nos 48 bairros da cidade, e seis deles surgiram ao longo dos últimos cinco anos, com o reordenamento da Zona de Expansão da capital, que foi dividida nas comunidades Robalo, São José dos Náufragos, Gameleira, Matapuã, Areia Branca e Mosqueiro. E de acordo com a Assessoria de Imprensa da Emurb, embora os seis bairros tenham sido criados, isso não impactou na quantidade de pessoas morando na região, pois não foram criadas áreas habitacionais, houve apenas a organização administrativa do território.
De acordo o diretor Executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Francisco Christovam, entre os diversos desafios relacionados ao desenvolvimento das cidades e ao crescimento populacional está a ocupação desordenada do espaço urbano, com a criação de novos bairros em áreas cada vez mais distantes, o que gera impactos diretos na extensão das linhas e no acréscimo da duração das viagens.
“Há ainda os desafios financeiros ligados à mobilidade urbana. É comum o poder concedente enfrentar a falta de recursos para manter e expandir a infraestrutura necessária, para investir em tecnologias mais eficientes e para oferecer serviços de melhor qualidade e boas experiências aos passageiros”, enfatiza Francisco Christovam.
Segundo ele, as autoridades públicas teriam que priorizar o transporte coletivo público e não o individual, e cita, como um dos motivos, a questão ambiental: o ônibus emite cerca de oito vezes menos dióxido de carbono, por passageiro, do que um carro.
SOLUÇÃO PASSA POR PLANO NACIONAL
Considerando que este é um problema de todo o país, Francisco Christovam avalia que para minimizar os impactos negativos do desenvolvimento urbano na oferta de transporte público à população, seria necessário investir em planejamento e realizar um plano nacional de mobilidade urbana, que estabelecesse critérios rígidos de zoneamento urbano, prevendo sistemas de transporte público que atendam todas as regiões das cidades.
“Deveria ser um esforço combinado entre todas as esferas de poder, e que tivesse como intuito desenvolver uma rede de transporte integrada, que combine e facilite os diversos modais existentes e aumentando a cobertura do sistema de transporte público. Criar corredores e faixas exclusivos para ônibus, por exemplo, pode aumentar muito a eficiência dos serviços e reduzir os tempos de viagem”, explicita.
O diretor da NTU ressaltou que o transporte público é vital para assegurar o acesso da população às políticas públicas e aos equipamentos urbanos, como escolas, unidades de saúde e locais de trabalho, e por saber dessa importância, em 2023 a NTU apresentou ao Ministério das Cidades um conjunto de propostas para um novo programa nacional de mobilidade urbana.
O documento previa a criação do Bolsa Transporte para a população de menor renda; a renovação da frota de ônibus; a priorização do transporte público no espaço viário; e melhoria da governança dos sistemas para aumentar a qualidade dos serviços percebida pela população.
CIDADES PRIORIZAM O INDIVIDUAL, NÃO O COLETIVO
E assim como o diretor Executivo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), Francisco Christovam, a Arquiteta e Urbanista, e ex-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Sergipe (CAU/SE), Heloisa Diniz de Rezende, afirma que uma das principais funções do transporte público é o de aproximar a população de serviços essenciais que não são fornecidos nas comunidades onde moram.
Porém, Heloisa Rezende afirma que as cidades brasileiras foram construídas não a partir do transporte coletivo, que é o que poderia fazer essa aproximação com os serviços da cidade, mas sim do transporte individual, a começar pelo tamanho das ruas, projetadas para automóveis.
“Nossa cidade deveria ser pensada para uma diversidade de modais, para todas as condições, inclusive de acessibilidade e gênero. Mas ela privilegia o carro, ela favorece quem tem carro, que devolve para a cidade trânsito intenso e poluição”, alerta a especialista.
A arquiteta e urbanista explicou o conceito de desenvolvimento urbano sustentável, que seria o fato de as pessoas viverem bem e conseguirem se desenvolver tendo acesso, na região onde habitam, aos serviços que a cidade tem a oferecer. E para exemplificar a importância do transporte público no bem-estar da população e promoção do desenvolvido socioeconômico, ela cita como exemplo o bairro Santa Maria, um dos mais afastados do centro da capital sergipana e com menos opções de serviços essenciais.
“Se a pessoa ganha um ou menos de um salário-mínimo, mora em um bairro que não possui esses serviços, que não oferece lazer, por exemplo, o transporte público tem esse papel fundamental de levar as pessoas até onde há desenvolvimento urbano para que consigam usufruir da cidade. E para essa população, haver transporte público subsidiado, e que não a faça passar uma hora de um bairro para o outro, é muito importante. O transporte público é fundamental para que o cidadão tenha o direito à cidade”, comenta.
Heloisa Rezende também é consultora nas áreas de Planejamento Urbano, Desenvolvimento Urbano Sustentável, Políticas Públicas, Assessoria e Assistência Técnica em Habitação de Interesse Social (ATHIS), e participou da atualização dos Planos Diretores dos municípios sergipanos de São Cristóvão e Estância.
Para ela, pensar no transporte público 100% subsidiado para população com hipossuficiência financeira é uma forma de distribuição de renda.
“Se a cidade é mais cara ou menos cara a partir dos serviços que eu possa usar, e se eu deixo de usá-los porque são caros, na hora que eu tenho um transporte que seja gratuito ou acessível é uma forma de distribuir renda, pensando que a renda é serviço em si, e a forma de a pessoa se desenvolver social e economicamente”, frisa.
CONHECENDO O SISTEMA DE TRANSPORTE PÚBLICO DE ARACAJU
O sistema de transporte coletivo da Região Metropolitana de Aracaju é composto pelos municípios de Aracaju, Nossa Senhora do Socorro e São Cristóvão, e transporta, por dia, mais de 200 mil passageiros através das 113 linhas disponíveis. O setor gera cerca de 1.800 empregos diretos, 80% homens e 20% mulheres. Do total de empregados, quase 900 são motoristas de ônibus, e nesta modalidade, a presença feminina ainda é tímida, pois são no máximo 10 motoristas mulheres. Para conhecer um pouquinho mais sobre o setor na RMA, conversamos com a presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Município de Aracaju (Setransp-Aju), Raissa Cruz. Confira a entrevista:
PRA VOCÊ SABER – Qual o número de empresas de transporte coletivo atuando no setor?
RAISSA CRUZ - São três grupos de empresas, somando sete empresas, com uma frota de mais de 500 veículos.
PVS – Em Aracaju já tem ônibus eletrificado rodando? Se ainda não existe, o que falta para trazer essa tecnologia para o estado?
RC - Ainda não temos ônibus eletrificados em Aracaju, essa é uma realidade que tem chegado no Brasil e as empresas do transporte estão acompanhando. Em algumas cidades onde foi implantado em esse tipo de veículo têm-se enfrentado dificuldades quanto ao abastecimento dos veículos pela utilização de carga de energia elétrica, em virtude do número grande de frota ônibus, e do maior tempo de utilização dos veículos por dia operando o serviço de transporte coletivo. Mas o setor não descarta alternativas que venham colaborar com o meio ambiente e a melhor prestação do serviço. Uma das alternativas já adotadas é aferição dos veículos a diesel pelo programa ambiental Despoluir, que faz a regulação do uso econômico e sustentável do combustível, reduzindo, assim, a emissão de poluentes.
PVS - Ainda há a figura do cobrador em alguma linha em circulação?
RC - Não há mais a função de cobrador nas linhas do transporte público, haja vista que com a modernização do sistema de bilhetagem eletrônica, estando presente em 100% dos ônibus, e com o acesso exclusivo com o cartão do transporte, que gera mais praticidade e segurança ao passageiro, o setor passou a direcionar outras oportunidades aos antigos cobradores, tanto para a profissão de motorista, como para uma nova função que desde 2019 vem contribuindo para com o melhor acesso das pessoas às recargas do cartão de transporte mais Aracaju: agente comercial. Em breve teremos novas funcionalidades de pagamento a bordo da tarifa, como cartão bancário e Pix com QR Code.
PVS - O que o setor precisa implantar para melhorar a mobilidade urbana, mas ainda não conseguiu, e por que ainda não conseguiu?
RC - De fato, a mobilidade urbana é um desafio para o desenvolvimento das cidades no mundo inteiro, e em Aracaju o setor de transporte tem buscado implementar tecnologias e estratégias que acompanham as principais capitais do nosso país. No entanto, assim como tem sido feito nessas capitais para todas essas ações, que vão desde priorização do transporte coletivo nas vias, maior e melhor acesso das pessoas ao transporte, às melhores condições dos veículos, será preciso investimentos contínuos na mobilidade urbana. Alternativas de desoneração de custos do serviço de transporte, como a isenção do ICMS do diesel, e outras formas de subsídios, são alguns dos mecanismos de fontes extra tarifárias que estão ajudando o setor de transporte a ter uma nova perspectiva de futuro para um melhor atendimento aos passageiros.
PVS - E como o Poder Público pode ajudar o setor a oferecer um melhor serviço para a população?
RC – A gestão pública pensando na mobilidade urbana, com certeza irá considerar maiores investimentos em infraestrutura das vias, com a priorização dos veículos que transportam a maioria da população, ou seja, os ônibus, bem como outros investimentos para reduzir o custo da prestação desse serviço, que é tão importante para o desenvolvimento da cidade. Sem transporte público coletivo as pessoas teriam dificuldade para acessar os demais serviços essenciais, por isso que alternativas como aportes, subsídios, fontes de custeio às gratuidades e desoneração de impostos podem contribuir de forma significativa.