Ex-professor da UFS, Ênio Moraes organiza livro sobre migração
19/06/2024
*Por Saulo Menezes de Oliveira Priez
Remolinos: histórias de migrantes latino-americanos na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá (São Paulo, 2024), publicado pela Editora Casa Flutuante, traz relatos sobre pessoas que deixaram os países de origem e tiveram que se adaptar a realidades bastante diferentes.
Até escrever esta resenha, a única atenção que eu tinha dado ao tema da imigração vinha justamente da minha própria experiência de vida e do ponto de vista midiático e político europeu, cheio de preconceitos, que vê os migrantes como ameaças às populações nativas.
O interessante é que a memória coletiva descarta o impacto dos impérios europeus e o fato de eles mesmos terem migrado e transformado grandes partes do globo, tanto em sentido positivo como negativo.
Por mais que pensemos que as mazelas da América Latina não existam em países considerados ricos, esta forma de pensar não é mais do que uma ideia que nos foi passada por outras nações com o objetivo de impor sua cultura, modo de vida, idioma e de nos tornar subservientes.
Em geral, problemas existem em todo canto, ainda que variem de forma e intensidade, em decorrência de uma série de fatores. Este é o ponto de partida de Remolinos - termo propositalmente cunhado em espanhol; redemoinhos, em língua portuguesa - e que os autores buscam demonstrar através de experiências e relatos de pessoas que largaram o nosso continente em busca de sonhos, ambições e mudanças.
Seja o destino do migrante o norte do continente americano, mais especificamente a parte anglo-saxônica ou francofônica, o Velho Continente ou qualquer parte do mundo, a razão pela qual pessoas largam os seus países divergem, mas os desafios que lhes são impostos são muitas vezes os mesmos. Adaptar-se a uma cultura distinta, a uma língua que não é a sua, a um clima estranho e a formas de viver díspares do que tinham como reconhecíveis causa muito transtorno.
Eu mesmo, ao deixar o Brasil no final de 2001 para viver no Reino Unido, não tinha a menor noção do que estava à minha espera. Na mala, levava poucos itens. Na mente, um senso de desbravar o mundo, de aprender sobre o que estava aqui fora e viver do meu modo. Mal sabia que os obstáculos pelos quais passei há quase 25 anos seriam indescritíveis justamente por estar muito além do que eu até então conhecia.
Sem falar que o suporte de amigos e familiares, embora importante, não minimizava as dificuldades de adaptação devido à distância.
Do outro lado do mundo
O mais interessante de ler e acompanhar em Remolinos é justamente a variedade de relatos sobre os motivos pelos quais latino-americanos deixam seus países, os percalços que enfrentam e as inevitáveis transformações em suas vidas. No meu caso, acabei questionando os meus valores, além do meu modo de pensar e de agir. E problematizar tudo isso sempre ganha uma nova pulsão cada vez que visito o meu lugar de origem.
Organizado por Enio Moraes Júnior, que durante algum tempo foi professor do curso de Jornalismo da UFS, as sete reportagens que compõem o livro foram escritas por oito jornalistas, todos migrantes latino-americanos, e relatam o cotidiano de outros tantos migrantes da mesma região que resolveram partir para países como Suíça, Portugal, Espanha, Estados Unidos, Canadá e Alemanha.
Publicado com apoio do Centro de Estudos Latino-americanos de Cultura e Comunicação (Celacc) da Universidade de São Paulo, a obra é prefaciada por dois docentes da USP, Dennis de Oliveira e Alexandre Barbosa. Entre os autores, além do próprio Enio, que escreve a partir da sua experiência de sete anos vivendo em Berlim, assinam as matérias os jornalistas brasileiros Adriana Navarro Manfredini, Daniel Ladeira de Araújo, Liliana Tinoco Bäckert, Renato Essenfelder e Sandra Nodari, a venezuelana Clavel Rangel Jiménez e a chilena Sandra Beltrán Baeza.
A partir do modelo de jornalismo de migração e refúgio trazido no livro, o leitor conhece um pouco da vida dos autores, além de pessoas com quem eles conversaram e, por uma série de razões, largaram tudo para ir embora com “a cara e a coragem”. Motivos econômicos, questões políticas, ameaças, preconceito, sonhos – qualquer que seja a razão da partida, o fato é que partir é somente o começo.
Em constante transformação
Largar a pátria é um processo de transformação contínuo, e se há algo que muitas das histórias descritas na obra confirmam é que quem deixa seu país por um longo período tende a se transformar radicalmente, mesmo se no futuro resolva retornar.
O estar ausente do que lhes era conhecido e a influência de padrões e modos de viver de outras terras fazem com que pessoas simplesmente moldem-se, tanto para sobreviverem quanto para serem aceitas.
Isto acontece paulatina e imperceptivelmente, até o momento que o migrante se depara com o seu lugar de origem, com as pessoas próximas e elas não o enxergam mais da mesma forma. Eu percebi bem isso ao ouvir comentários de outros brasileiros do tipo: “você fala português muito bem”, tendo-me como estrangeiro. O nosso jeito de falar muda, os trejeitos também. Até o jeito de comer.
É como se misturassem vários ingredientes em seu corpo e você se transformasse em um prato distinto do que os demais já tenham provado. O que permanece mesmo é a sua essência, o seu lado mais íntimo.
E por falar em comida e degustação, um dos capítulos que mais me fez sentir nostálgico foi justamente o que fala sobre gastronomia. Escrito pela jornalista Adriana Navarro Manfredini, a reportagem enaltece os sabores do Brasil e como eles unem a comunidade nacional, servindo também de sustento para muitos que, ao estarem fora do país, tendem a se reinventar para sobreviver em lugares onde nem sempre os imigrantes podem exercer as profissões de outrora.
Depois de visitar tantos países acompanhando uma dezena de personagens migrantes, o ponto de chegada de Remolinos é, enfim, um livro que mostra que migrar é transformar-se e aceitar o alheio como parte de si. Agora é a sua vez de viajar com a obra e experienciar um pouco mais sobre o processo inquietante que é sair de um canto do mundo para outro. Acesse gratuitamente o e-book aqui.
Boa leitura!
*Saulo Menezes de Oliveira Priez é formado em Jornalismo e pela Universidade Federal de Sergipe, com mestrado em Multimídia pela University of Gloucestershire, no Reino Unido, onde vive desde 2001. Nascido em Aracaju, teve que se adaptar ao clima frio e ao individualismo britânico para se firmar no mercado de trabalho europeu, e hoje atua na área de comunicação de empresas.
Referência MORAES JÚNIOR, Enio (Org). Remolinos: histórias de migrantes latino-americanos na Europa, nos Estados Unidos e no Canadá. Edição: Adriana Navarro Manfredini e Liliana Tinoco Bäckert. E-book. 1. ed. São Paulo: Editora Casa Flutuante, 2024.