Prateleiras e espaços da cozinha guardam mais que objetos

24/04/2019


Texto e fotos por Enio Moraes Júnior

Peguei a furadeira elétrica, fiz dois buracos na parede da cozinha e acomodei uma tábua de 80cm de largura que estava jogada em algum canto da casa. Resolvi colocar um material excedente ali, embaixo de outra prateleira maior. Agora eram mais de dois metros cheios de copos, xícaras e potes. De repente, percebi que nas duas estruturas havia espaço não apenas para objetos, mas também para muitas memórias.

Eu sou um brasileiro, nordestino, de família tipicamente nordestina. Moro em Berlim, na Alemanha, e sou casado com um alemão de família vinda da Rússia. Quando me dei conta estavam todos esses fatos ali, nas duas prateleiras da cozinha. Tábuas de madeira simples, discretas, baratas e tão visceralmente imponentes contando histórias.

Memórias afetivas estão em todos os lugares da nossa casa, basta olhar com atenção.

Algumas xícaras coloridas de ágata, ganhas de presente de uma querida prima de Aracaju, se misturavam a potes de temperos com palavras em russo, dados pela avó do meu marido, uma senhorinha que vive na cidade alemã de Paderborn. Dois bules, um chimarrão, velas... Fiquei surpreso ao me dar conta de que tanta gente e tantas lembranças podem caber em tão modestas prateleiras. Imaginei que isso deve acontecer em muitas cozinhas mundo afora.

Olhei em volta e vi pacotes de café e de flocos de cuscuz brasileiros que se misturavam a chás e iguarias alemãs compradas em Berlim. Algumas panelas encardidas entregavam certo “easy going” dos donos da casa e denunciavam que precisavam de mais cuidado para seguir narrando o cotidiano.

Imãs de geladeira nos ajudam a fazer uma viagem no tempo

Sobre o fogão, atentei para um quadro onde se lia “Yo cocino, vos lavas”, lembrança de uma viagem à Argentina que, sobretudo, sela um acordo da vida doméstica. Na geladeira, imãs. Presentes, movimento, idas e vindas... Tudo se acomodava naqueles espaços da cozinha.

 

ENCONTRE-SE, EXPONHA-SE

Certamente, se houvesse mais prateleiras caberia mais treco, pensei. Olhei para o outro lado e lembrei que uma das coisas que mais me agradou quando mudei para o apartamento berlinense é que a varanda – o “Balkon” – é uma extensão da cozinha. Sempre me chamou atenção o fato de esse lugar nobre de alguns apartamentos da cidade ser estrategicamente colocado “nos fundos”.

Cozinhar é terapia e um ato de amor!

É ali, nas sacadas da varanda, que os vizinhos se encontram. “Hallo! Guten Morgen!”. É a partir dali, daquela extensão das cozinhas tão repletas de coisas e memórias, que os moradores abandonam momentaneamente o interior do lar e se aproximam do mundo “lá fora”, dos outros. É depois de se reconhecerem ali dentro, que se expõem.

Cuide bem da sua cozinha. Preste bastante atenção nas prateleiras, nos armários e nos espaços. Faça desse ambiente um universo especial para estar e para receber amigos. Procure-se, encontre-se e se exponha ali dentro. Reconheça-se! Aliás, deve ser por conta disso que cozinhar é uma terapia.

Nas prateleiras ou armários deste eloquente cantinho da casa moram mais que as marcas da sua alimentação. Habitam também a sua história, a sua memória e muito da sua essência. É na cozinha, suspensos em tábuas de madeira ou dentro de estantes, que os chás, os cafés e os temperos guardam a alquimia que alimenta a sua alma. As prateleiras da sua cozinha, afinal, têm muito de você. “Lust auf 'n Käffchen?” (“Aceita um cafezinho?”).

 

 

Enio Moraes Júnior é um jornalista brasileiro que vive em Berlim, onde trabalha com marketing e jornalismo. Ex-professor da Universidade Federal de Sergipe,é doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Acesse: https://enioonline.wordpress.com/



Comentários

Ênio Moraes comentou:
Falar o quê? Esse comentário é a sua cara. É a eloquência do decorador e a arrumação de uma residência quase perfeita sem falar na aproximação com os vizinhos. Muito bom. Parabéns. Um abraço. Ênio Moraes.

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