Religiões de matriz africana: principal alvo da intolerância religiosa

12/10/2022


Por Andréa Moura

No início da segunda semana do mês de agosto, um pai de santo teve o terreiro invadido pelo familiar de uma pessoa que seria recolhida em obrigação para tornar-se integrante do candomblé. Ameaçado, o sacerdote teve que deixar o local às pressas para não sofrer mais agressões.

O caso aconteceu na capital sergipana, Aracaju, e foi relatado pelo promotor de Justiça e responsável pela Coordenadora de Promoção da Igualdade Étnico-Racial do Ministério Público do Estado de Sergipe (COPIER/MPSE), Luís Fausto Dias Valois Santos, sem que o nome do pai de santo ou do terreiro fossem revelados.

Crimes de Intolerância Religiosa e contra a Liberdade de Expressão dos povos das religiões de matrizes africanas ou afro-brasileiras, infelizmente, são constantes no Brasil, embora ainda haja muita subnotificação em virtude, principalmente, do medo que os integrantes dessas comunidades têm de não serem devidamente acolhidos nas instituições de Estado.

É o que afirmam os defensores públicos Sérgio Barreto e Eric Martins, do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de Sergipe. “A discriminação com essa comunidade é muito grande, mas quando são levados às delegacias de polícia, infelizmente vão como réus. Existem muitos casos que são colocados para debaixo do tapete porque as vítimas não prestam queixa por medo de falta de acolhimento nas instituições”, comentam.

Segundo eles, outro agravante é o fato de muitos desconhecerem que a Defensoria Pública está de portas abertas para proteger os direitos do cidadão, tanto os individuais quanto os coletivos. “A maioria conhece, apenas, a OAB e o Ministério Público”, frisam os Defensores.

De fato, o número de casos sobre o tema na DPE é muito pouco, ao ponto de não criar estatísticas robustas sobre o tema. E mesmo no MPSE, órgão que possui uma coordenadoria específica para interceder e dar apoio às promotorias que recebam casos de intolerância religiosa, o número dificilmente condiz com a realidade.

Casos com atuação da COPIER

De 2016 até 2020 a COPIER atuou em 13 casos. O ano com maior número de registro foi 2018, com cinco processos acompanhados. Dentre os casos, ultraje/impedimento ou perturbação de culto religioso por parte da Polícia Militar, que instigada por vizinhos ao ligarem para o 190, interrompeu as manifestações religiosas e, em alguns casos, apreenderam os atabaques, que são instrumentos sagrados para o candomblé e a umbanda.

Teve, ainda, caso envolvendo vereador de cidade sergipana que, em plena tribuna, afirmou que “Umbanda é coisa do demônio”; pastora que perseguia a vizinha por ser do Candomblé; veículo de comunicação que publicou charge considerada ofensiva à religião, ao abordar a mudança de data da votação no STF sobre a legalidade da sacralização animal nos rituais.

Consta, também, a suposta invasão a um terreiro, por policiais militares, a mando de uma fiscal da prefeitura de Aracaju, que apreendeu animais e impediu a realização do culto; e a destruição, por populares, de um terreiro de Candomblé e de um salão de beleza que ficava anexo ao local, pois acusavam o pai de santo de sequestrar um garoto de oito anos para ritual de magia, e cuja inocência do sacerdote foi comprovada pelas investigações da Polícia Civil.

 

Discurso de ódio cresce em 2022

Foto: Karina Zambrana

E, por falar em Polícia Civil, segundo informações da Dra. Meire Mansuet, delegada responsável pela Delegacia Especial de Crimes Homofóbicos, Raciais e de Intolerância (DEACHRI), de 2018 a 2022 a delegacia registrou 14 casos de intolerância religiosa na capital sergipana.

Esse tipo de crime, quando ocorrido no interior do Estado, é registrado nas respectivas delegacias municipais. De acordo com o levantamento feito pela Coordenadoria de Estatística e Análise Criminal da Secretaria de Estado da Segurança Pública (CEACrim/SSP), de 2019 até 2022 foram registrados cinco ocorrências de prática discriminatória ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (racismo).

É importante ressaltar que, em relação a esses números de ocorrências policiais, não seria correto afirmar que todos se trataram, única e exclusivamente, de intolerância contra povos de terreiro.

Questionada se o número de registros policiais quanto a intolerância religiosa contra os povos de terreiro (religiões de matrizes africanas) seriam os reais ou subnotificados, em virtude do medo ou desconhecimento dos direitos que os integrantes dessa comunidade possuem, e por isso, acabam não prestando queixa na delegacia especializada, Dra. Meire Mansuet diz: “acredito que existe uma subnotificação em relação aos casos registrados. Os fatores que levam a essa subnotificação precisam ser estudados e mensurados”.

De janeiro a junho de 2022, o Disque 100, serviço do governo Federal ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e criado para denunciar violações de direitos recebeu 545 denúncias de intolerância religiosa de todo o país. No mesmo período de 2021 foram 466 denúncias e, nos seis primeiros meses de 2020, a quantidade de casos foi de 498.

Dados divulgados pela Safernet, a primeira Organização Não Governamental do Brasil a estabelecer uma abordagem multissetorial para proteger os Direitos Humanos no ambiente digital, e que existe desde 2005, apontam que até 30 de junho do corrente ano a intolerância religiosa foi o crime de ódio com maior crescimento percentual, quando comparado com o mesmo período do ano passado: 654%.

De janeiro a junho deste ano foram 2.813 e a ONG afirma que os indicadores da Central de Denúncias apontam que as eleições foram um gatilho para o avanço do discurso de ódio. Para se ter ideia de como esse crescimento foi vertiginoso, em todo o ano de 2017 foram registradas 1.459 denúncias; no ano seguinte, 1.084. Em 2019 o foram 1.413 queixas, um pouco mais que em 2020, quando a Safernet recebeu 1.321 denúncias. Já em 2021, até junho, foram 759 registros.

Casos que marcaram a COPIER

Dr. Luís Fausto Valois. Foto: Ascom MPSECriada em 2017, a Coordenadoria de Promoção da Igualdade Étnico-Racial do Ministério Público (COPIER/MPSE) tem à frente o promotor de Justiça Luís Fausto Valois, que por cinco anos também atuou no GT Racismo, Grupo de Trabalho do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) que traça ações, propostas de resoluções e recomendações para que diversos ramos do MP desenvolvam ações relacionadas ao enfrentamento do racismo e da intolerância religiosa.

Até a criação da COPIER, o MPSE não tinha órgão referenciado para o enfrentamento do racismo e da intolerância religiosa e vale ressaltar, intolerância a toda e qualquer religião.

Dentre as atribuições da coordenadoria estão o fomento de trabalho para a implementação de cotas no serviço público, palestras, ações educativas, seminários e apoio aos colegas promotores de Justiça nos casos envolvendo intolerância religiosa e racismo.

O promotor de Justiça também foi o responsável por intermediar, junto à Fundação Aperipê, a abertura de espaço na rádio Aperipê para um programa destinado às religiões de matrizes africanas, para que assuntos de interesse da comunidade fossem debatidos e para que houvesse a dissolução dos preconceitos existentes contra a comunidade. Infelizmente, segundo Dr.Luís Fausto, no início de 2022 o programa deixou de ser exibido.

Dr. Fausto Valois conta que vários casos de intolerância religiosa chegaram ao MPSE e em muitos, a orientação foi de que os reclamantes procurassem a Delegacia Especializada, a Defensoria Pública ou a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), isso quando configurados casos individuais, para que as ações necessárias fossem interpostas, uma vez que o MP atua em causas coletivas.

Porém, ele afirma que dois casos marcaram muito os integrantes da COPIER: o da mãe de santo Quida, e o de um pai de santo que teve o terreiro incendiado por populares sob acusação de ter matado uma criança para ritual de magia.

O desrespeito a Mãe Quida

Na manhã do dia 23 de fevereiro de 2018, no Bairro 18 do Forte, fiscais da secretaria municipal do Meio Ambiente (SEMA), acompanhados de policiais militares, estiveram no terreiro da Mãe Quida, para apurar suposto crime de maus-tratos contra animais.

Relatos da Iyalorixá e de testemunhas ao MPSE afirmaram que os policiais invadiram todos os ambientes do terreiro, não respeitando os espaços sagrados nem a homilia dos rituais, e apreenderam animais, como pato, cabra e galinhas, animais que seria para a festa religiosa do local, afirmando que nenhum deles poderia ficar no local, tendo sido levados para outro local e, no trajeto, alguns acabaram morrendo em virtude do calor.

Dr. Fausto Valois relembrou que foi ingressada Ação Civil contra o município de Aracaju para que houvesse o pagamento de indenização pelo ocorrido por suposta violação ao exercício de culto religioso, conforme Artigo 23 do Estatuto da Igualdade Racial. A ação foi procedente em primeira instância, e o valor da causa deveria ser revertido para o fundo previsto em Lei.

Também houve, a pedido do MPSE, instauração de inquérito policial na delegacia especializada, em 3 de julho de 2018, que foi finalizado em setembro do mesmo ano, com o indiciamento da fiscal da prefeitura pela prática dos crimes de racismo e de impedimento de culto.

Infelizmente Mãe Quida, uma sacerdotisa com 31 anos de feitura, idosa e com comorbidades, como diabetes e hipertensão, faleceu vítima da covid, em 2021, e não vislumbrou o final da ação, que foi favorável a ela.

“Esse foi um dos mais tristes casos que já vi, porque houve a destruição da intimidade, da liturgia, do respeito ao templo da Mãe Quida, que faleceu sem ter visto o desfecho da ação imposta, que ainda está em grau de recurso”, lamentou o promotor de Justiça.

PMSE: tratamento legal e igualitário

Questionado se a PMSE possui um grupo de trabalho específico para atender casos de denúncias envolvendo terreiros de religiões de matrizes africanas, o assessor de Comunicação da entidade, o Tenente-Coronel Fábio Luiz Silva Machado, informou que não há um grupo específico, pois os casos são tratados como ocorrência rotineira.

Ao ser perguntado sobre qual a orientação dada para os soldados quanto aos Direitos Humanos e Liberdade de Expressão dos povos das religiões de matrizes africana em Sergipe, quando das ocorrências relacionadas ao assunto, ele disse que o atendimento fornecido é igualitário e dentro do princípio da legalidade.

 

“O Estado é um dos grandes

responsáveis pelo racismo religioso”

Pejivan Irivan de Assis. Foto: Portal Infonet

Em 2007 foi criado o Fórum das Religiões de Matrizes Africanas de Sergipe, que tem como objetivo combater o racismo religioso, lutar contra a intolerância religiosa, pela liberdade religiosa e na defesa de um estado laico. Desde o ano de criação, o Fórum é presidido pelo pedagogo Irivan de Assis Santos Silva, que exerce o cargo de pejigan, autoridade no Candomblé que consiste na segunda pessoa no terreiro, na hierarquia da casa.

O PRA VOCÊ SABER conversou com ele para entender um pouco mais sobre os crimes recorrentemente praticados contra os adeptos das religiões de matrizes africanas. Confira trechos da entrevista:

PRA VOCÊ SABER - Quantos casos de crimes de Intolerância Religiosa o Fórum das Religiões de Matrizes Africanas de Sergipe teve conhecimento nos últimos cinco anos (2018 a 2022)?

IRIVAN DE ASSIS SANTOS SILVA – Temos conhecimento de uma média de 20 casos.

PVS - Quantos terreiros de Candomblé e Umbanda existem em Sergipe, atualmente?  O senhor saberia me dizer a quantidade de praticantes no Estado? Qual o mais velho local e há quanto tempo existe?

IASS - Não temos o mapeamento das casas de matriz africana em Sergipe – por falta de políticas públicas -, mas conforme nossa ação de cadastramento para entrega de cestas básicas na pandemia, existem, aproximadamente, 700 casas de matriz africana em Sergipe. A quantidade de praticantes não temos. O terreiro mais velho e onde tudo começou foi na cidade de Laranjeiras, na Irmandade Santa Bárbara Virgem e Filhos de Obá; e o também centenário Abaçá São Jorge, de Mãe Nanã, comandada hoje por Mãe Marizete – Oyá Matamba.

PVS - Quais os tipos de crimes de intolerância religiosa que o senhor recebe? Quais os mais recorrentes?

IASS - O mais acentuado é sobre a perturbação do sossego por conta de ação dos fundamentalistas cristãos, fechamento de terreiros, apreensão dos instrumentos sagrados, de animais ritualísticos e até queima de terreiro. Acompanhamos dois casos: um no Porto Dantas outro na Zona de Expansão.

PVS - O senhor acredita que os órgãos de estado estão preparados para atender esse tipo de demanda?

IASS - Na atualidade, não. O Estado é um dos grandes responsáveis pelo racismo religioso, quando atende o chamado dos fundamentalistas e tem atitude racista expondo os nossos sacerdotes e sacerdotisas, e os tratam como criminosos.

PVS - Qual o caso mais recente de intolerância que o senhor teve conhecimento e onde ele aconteceu?

IASS - Citei dois no tópico anterior, mas tem o do influencer digital com repercussão nacional; de evangélicos desqualificando o nosso ritual; além de todos os dias as igrejas pentecostais nos agredirem nos programas de televisão que possuem, atribuindo a nossa religião milenar ao diabo e associando-a a práticas satânicas.

PVS - O senhor já chegou a “entender” o cerne dessa intolerância religiosa? Estaria ligado a uma questão racial (cor da pele)?

IASS - Desde um suposto inofensivo 'chuta que é macumba'; olhares tortos por usar branco e guias no pescoço; até ações mais violentas como apedrejamentos, o racismo religioso é uma realidade no Brasil. E cito três casos emblemáticos, sendo dois deles na Bahia. Em Alagoinhas, no final de maio, no Ilê Axé Oyá L’adê Inan, um grupo de religiosos evangélicos foi para a porta da casa gritando e batendo com bíblias no portão, dizendo que “Satanás iria sair”. Também teve o caso dos 100 quilos de sal jogados na Pedra de Xangô, em Cajazeiras (BA), local tombado pela prefeitura de Salvador como monumento natural, que faz parte da área também tombada do antigo Quilombo do Tatu. Em Aracaju eu cito a queima de um terreiro no Bairro Soledade.

PVS - Qual o caso que mais te marcou?

IASS - Sem dúvida o incêndio de um Terreiro no Bairro Soledade, provocado pela população, que acusava o Babá de ter matado uma criança para fazer a chamada ‘magia negra’, frase na qual já está embutido o racismo, e ação que quase matou uma senhora inocente de 68 anos de idade. Já ficou provado que o terreiro em nada tinha a ver com a morte da criança.

 

21/01: Dia de luta contra a Intolerância

Foto: Karina Zambrana

Após ataques morais recorrentes contra a Iyalorixá Gildásia dos Santos, conhecida como Mãe Gilda de Ogum, provocarem a morte da sacerdotisa no dia 21 de janeiro de 2000, o governo Federal instituiu, em 2007, o dia 21 de janeiro como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, que marca a luta pelo respeito à diversidade de crença.

Mãe Gilda era a responsável pelo terreiro de Candomblé Ilê Axé Abassá de Ogum, localizado nas imediações da Lagoa do Abaeté, bairro de Itapuã em Salvador/BA. Ativista social, se destacou pela personalidade forte e grande participação em ações para a melhoria do bairro de Nova Brasília de Itapuã.

O Estatuto da igualdade racial

Em 20 de julho de 2010 foi criada a Lei 12.288, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos, e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.

Da Lei, destacamos dois artigos, o 23 e o 24.

Artigo 23:

É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias.

Artigo 24:

O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende:

I - a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins;

II - a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das respectivas religiões;

III - a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas;

IV - a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação específica;

V - a produção e a divulgação de publicações relacionadas ao exercício e à difusão das religiões de matriz africana;

VI - a coleta de contribuições financeiras de pessoas naturais e jurídicas de natureza privada para a manutenção das atividades religiosas e sociais das respectivas religiões;

VII - o acesso aos órgãos e aos meios de comunicação para divulgação das respectivas religiões;

VIII - a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em quaisquer outros locais.

*Matéria editada às 7h13 de 01/11/2022 para correção de um nome



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