CRÔNICA: Vai passar
18/06/2020
*Rosimayre Oliveira
Monotonia. A moleza ressentida das horas. O peso dos anos inúteis em suas costas curvadas. A repetição diária dos assuntos transmitidos nos noticiários nesses últimos meses a incomodava. Reclusão imposta. O mundo de mãos-postas. Precisava fazer algo que a tirasse desse marasmo por alguns instantes. Naquele dia, uma sexta-feira morna beirando o final de semana e que nada prometia de diferente, ela resolveu agir. Escolheu a sua máscara combinando com a blusa casual, porém elegante, e dirigiu-se ao shopping mais próximo. Estava decidida a executar uma ideia que se instalara em sua cabeça – já revestida por fios prateados.
Poucas vezes havia entrado em uma livraria. Mas, aquele seria o lugar ideal para pôr em prática o seu plano. Em livrarias, as pessoas costumam ficar absortas, debruçadas sobre os livros. Discretamente, olhou para os lados e constatou não haver nenhum funcionário ou outro visitante por perto. Seria mais fácil do que imaginara.
Delicadamente, retirou a máscara, tossiu nas próprias mãos e, logo em seguida, tocou nas canetas expostas no mostruário. Sentiu-se exultante. Mas, ainda era insuficiente. Precisava intensificar o seu pernicioso prazer momentâneo. Prosseguiu, movendo-se em direção a outra seção da loja, onde cuspiu (ahhh!) em uma das mãos e carimbou alguns livros com sua saliva viscosa e supostamente contaminada. Não satisfeita, fez o mesmo procedimento em um dos teclados dos computadores da loja.
Após executar o que planejara saiu sorrateiramente, convicta de que ninguém a teria visto. Mais adiante, respirando o ar dos impuros, trilhando os passos dos perversos, sentiu-se minimamente realizada. A sua rotina havia sido quebrada por aquele feito nefasto. Sorria ao imaginar tantas mãos ingê-NUAS tocando aqueles objetos insuspeitos. Homens, mulheres, de variadas faixas etárias vulneráveis dentro de uma livraria. Agora estava eufórica para apreciar as vitrines, adentrar nas boutiques, encher as sacolas de roupas e voltar para casa. A sua casa, onde costuma trocar de casca. Dentro da loja, duas moças incrédulas, imóveis, custando a crer no que terminaram de ver. Gritos. Correria. Polícia. Nenhuma pista.
Esse relato, devido à incidência da maldade gratuita poderia ser apenas fruto da minha imaginação criativa. Infelizmente não é! Fato verídico. Notícia veiculada no Jornal Extra Digital, ocorrido na capital do Distrito Federal. Além de caracterizar uma atitude criminosa – considerando a possibilidade real de essa mulher estar infectada pelo novo coronavírus - o fato, além de repulsivo, é extremamente simbólico.
Ao cuspir em livros, canetas e teclado, essa senhora evidencia o desprezo máximo pela Ciência, pelos livros e, por conseguinte, pela cultura de modo geral. Uma atitude não reativa, pois, ninguém a provocou, ninguém a insultou, portanto, a agressão dela é caracterizada como instrumental – feita deliberadamente, de forma planejada. O seu objetivo fora atingir seus oponentes, pessoas leitoras que valorizam e respeitam as Artes e a Ciência. Espantoso.
Diante de tantos acontecimentos execráveis ocorridos ultimamente, inevitável não sermos tomados, em algum momento, pelo sentimento de desalento. A impressão que dá é que os ponteiros do relógio estão girando em sentido anti-horário. Estamos retrocedendo enquanto humanidade? Estamos involuindo? Ou estão dando visibilidade demais para uma minoria atroz? Embora o mito grego evidencie que ao abrir a sua caixa, Pandora teria libertado todos os males da humanidade e somente a esperança teria ficado presa, desacredito.
Mito é tão somente mito. Não se aplica à realidade factual. A esperança está viva em nossa caixa torácica. Deixemos que ela voe por aí espalhando suas sementes em terrenos férteis. E cantemos, como Gonzaguinha: Que toquem os sinos em nome da esperança/ Eterna criança que vive, brincando, no peito dos homens (...) Que traga a alegria o toque feliz deste sino/ E faça dançar nas ruas meu povo menino.
Tudo irá passar, assim como versejou Mário Quintana em seu Poeminho do Contra:
Todos esses que aí estão / Atravancando meu caminho / Eles passarão... / Eu passarinho!
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*Rosimayre Oliveira: baiana, residente no Piemonte da Chapada Diamantina, graduada em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual da Bahia e Especialista em Metodologia de Ensino e Pesquisa na Educação em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Escrever é a sua forma de existir no mundo, de fazer ecoar as muitas vozes que se recusam a emudecer. E essas vozes costumam se comunicar, através de diversas roupagens gráficas que revestem prosa e poesia. Possui alguns de seus textos, principalmente poemas, publicados em Coletâneas e plataformas digitais.
PS.: A imagem utilizada para ilustrar a matéria é uma criação do artista duMATU @dumatu