Espiritualidade: seria este o novo mercado do século XXI? - ARTIGO

24/08/2021


*Por Andréa Moura

Ultimamente tenho visto um movimento crescente em busca do “eu” espiritual, e ouso dizer que grande parte das pessoas que iniciou essa caminhada a fez em virtude da pandemia da Covid-19. Talvez o medo da morte e o vazio que isso causa para muitos tenha sido um dos motivos.

Medo? Sim. Embora a morte do corpo físico seja a única certeza que tenhamos, não nos é ensinado a lidar com ela, e por causa disso, por ser tão “irreal”, achamos que sempre teremos tempo para tudo, para os planos de daqui a cinco, dez, vinte anos. O fato é que não sabemos quando o nosso prazo de validade irá vencer e pensar nisso ainda causa muito desconforto, tipo um filho adolescente indo falar abertamente sobre sexo com os pais.

Porém, volto a dizer que tem crescido a procura por saber se após a morte dormiremos em berço esplêndido até o juízo final; se o inferno existe de verdade; se nossos erros serão passados em um telão constrangedor; ou se o nosso espírito será compelido a novos trabalhos no astral até o dia de regressar a um novo corpo físico.

Podemos dizer que isso tudo faz parte dessa busca espiritual que, para mim, é igual a senha de banco: pessoal e intrasferível. Podemos e inclusive devemos pedir ajuda a quem entende verdadeiramente sobre o assunto quando não conseguirmos assimilar algo com clareza, porém, auxílio não é imposição, e é preciso ter cuidado com quem irá te dar algum tipo de orientação porque, infelizmente, charlatanismo existe em todo lugar e em todos os aspectos que ousarmos imaginar.

O isolamento social imposto pelo novo coronavírus desde março de 2020 colocou muita gente a pensar sobre diversas coisas, sobre diversos aspectos da vida e acredito que boa parte deles permeava o bom e velho medo da morte, da própria ou de alguém muito querido. E por causa desse “gap” brotaram também, como consequência pandêmica, pessoas dizendo-se especialistas em ensinar o caminho das pedras pelas redes sociais, principalmente através do Instagram e do Youtube.

Criaturinhas que antes falavam vorazmente sobre moda, culto ao corpo, paixões mundanas dos mais variados tipos e exibiam os exemplos nas respectivas timelines - fotos lindas de farrinhas ‘topezeiras’, nas baladas, incentivando o consumo das marcas que lhes pagavam para isso - agora querem influenciar as pessoas que as seguem a encontrarem o caminho da iluminação espiritual com base em livros que supostamente leu, vídeos no Youtube ou alguns cursos que fizeram, a maioria online, durante a pandemia.

Ok, acho muito digno prestar ajuda a quem precisa, só não entendo como uma galera quer fazer isso utilizando o mesmo modus operandi anterior e, na minha opinião, trocando apenas o produto gerador de renda. Oferecem cursos, retiros e encontros – todos pagos – visando desenvolver a espiritualidade alheia falando sobre preceitos budistas, campo energético, egrégora mental, mediunidade, elevação espiritual e expansão da consciência, porém, sem perder o lifestyle glamuroso e de exibição de fotos no Insta das taças e mais taças de vinhos consumidas naquele restaurante chique da cidade; das viagens com os amigos e celebrações - mesmo durante a pandemia por Covid-19 -, e mais tantas outras coisas do tipo.

ESCAMBO ESPIRITUAL?

Desculpa se pareço grossa, antiquada ou até mesmo alienada aos olhos de muitos, MAS, desenvolvimento espiritual e uma vida glamurosa ostentada nas redes sociais é igual a água e óleo, não se misturam, não combinam. E, ao ver coisas desse tipo em perfis que se dizem de pessoas espiritualizadas/espiritualistas, e que dizem “te ajudo no seu processo de autoconhecimento e espiritualidade”, na minha cabeça já aparece a pergunta: será que essa criatura está mesmo preparada para ajudar alguém a encontrar algo tão valioso?

Pior ainda é quando associam o caminho espiritual a ganhos de todos os tipos, mas, principalmente, financeiro e amoroso. Aí, meu caro, é dia de chuva em local íngreme: só ladeira abaixo. Iluminação, elevação crística, expansão da consciência são contrárias ao ego, à vaidade, à ostentação de uma vida cheia de glamour, e um exemplo disso é a história de Siddhartha Gautama, mais conhecido como Buda.

Para encontrar a iluminação, Buda deixou o palácio luxuoso onde morava sem um conto no bolso – ele era filho de um rei - e saiu pelo mundo em busca das respostas que precisava. Durante a jornada raspou os cabelos em sinal de humildade e abandonou as roupas luxuosas, passando a usar apenas trajes em cor amarelo e com corte simples, cujo modelo é utilizado por monges budistas.

E... aproveitando que falamos em Buda, mas ainda dentro do assunto escambo espiritual, causou-me incômodo e muita estranheza o fato de Monja Coen, missionária oficial da tradição Soto Shu que possui sede no Japão, e Primaz Fundadora da Comunidade Zen Budista, surgida em 2001 na cidade de São Paulo ter, recentemente, se associado à Ambev para ser “embaixadora da moderação” da empresa.

Juro não ter entendido como uma pessoa que prega nas redes sociais, livros e palestras os princípios do Budismo (das mais variadas formas) aceitar “juntar” a sua “marca” à da indústria alcóolica. E deixa esclarecer logo, antes que comece a má interpretação do que estou tentando falar: nada tenho contra a empresa, pelo contrário, só acredito que os princípios do budismo e de uma empresa de bebidas alcóolicas estejam em sentidos contrários.

Continuam sendo contrários mesmo quando a indústria afirma que pode, “junto da sociedade, transformar o mundo em um lugar melhor para se viver”, e que o incentivo a novas atitudes, como consumo responsável e preservação de recursos naturais são causas da empresa. São princípios louváveis? Putz, demais! Mas não teria um médico, um psicólogo ou alguém da área da saúde para ser embaixador da moderação?

O problema, meu querido leitor e pela minha ótica, é bom deixar frisado, é que sendo uma embaixadora do Zen Budismo e defendendo os princípios basilares desta filosofia de vida, Monja Coen não estaria indo de encontro ao 5º princípio, que diz, especificamente: “não ingerir substâncias intoxicantes”?

A despeito de ela ser embaixadora apenas da cerveja zero álcool ou dos refrigerantes (que também são substâncias intoxicantes), continuo sem entender como ela será embaixadora da moderação de uma indústria cervejeira. Será que ela fará comercial dizendo algo do tipo: olha meu filho, minha filha, ao invés de beber cinco litros de ceva, beba só dois! Acho que não, né?

Sem dúvida, associar a imagem da monja à da empresa foi algo que rendeu à Ambev pontos muito positivos e que fortalecem a missão de transformar o mundo em um lugar melhor para se viver, já o contrário, tenho minhas dúvidas. Os motivos que levaram a Monja a aceitar tal proposta, eu também não sei. Pode ter sido grana, muita grana? Talvez, mas não posso afirmar. Ganhos no sentido de marca por causa desse co-branding? Também pode ter sido e, mais uma vez, também não sei.

A minha preocupação com esses exemplos que citei ao longo do texto é que filosofias de vida, doutrinas e práticas religiosas (que inclusive não foram citadas no texto) que merecem respeito, pois ajudam comprovadamente o ser humano a ser melhor, possam ser maculadas por causa do “deus” dinheiro e do “deus” status social.

Tenho receio que caiam em descrédito e, pouco a pouco, desilusão após desilusão, passemos a viver achando que o que importa é aquilo que não levaremos a lugar algum quando o passaporte da vida tiver que ser carimbado e, até lá, por causa de “desvios”, viver seja como uma caminhada pelo Saara em pleno meio-dia.

 

*Andréa Moura é Jornalista, idealizadora e Editora Chefe do Pra Você Saber, e CEO da Andréa Moura Comunicação e Eventos



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