Quando violentar e ferir a integridade do outro se torna uma simples importunação ofensiva do pudor

04/09/2017


Ultimamente tenho tido a impressão de que o Brasil tem regredido, e muito, ao invés de progredido. Aliás, progresso, por enquanto, só na bandeira nacional, caso não queiram muda-la. O que me chama a atenção, negativamente, é perceber que até as brechas no Direito são encontradas e vistas ao bel prazer de quem está legislando. Ficou confuso? Vamos lá que eu explico utilizando dois exemplos: em 2007 uma adolescente de 15 anos, no interior do Pará, foi detida sob a acusação de tentativa de furto. Até então, nada fora do normal para o acontecido, a não ser pelo fato de uma juíza ter dado a ordem de enfiar a menina em uma cela com 30 homens. Dá pra imaginar o que aconteceu, não é? A juíza foi punida, mas só em 2016 e mesmo assim, com afastamento do cargo por dois anos, mas claro, recebendo o lindo salário.

O outro exemplo é bem mais recente e trata da premiação do filho de uma juíza, no Mato Grosso do Sul, com a saída da prisão mesmo tendo sido preso em flagrante por portar arma ilegalmente; estar com 130 quilos de maconha e muita munição para armas de uso restrito. Achou pouco? O garotinho ainda era investigado por tramar o resgate de um chefe do tráfico do Estado dele. Mas a pobre criança foi retirada da cela por influência da mãe, sob a alegação de que o baby tem transtorno de boderline e seria dependente químico. Mas, porque você está falando sobre isso? Sobre exemplos de desrespeitos graves ao ser humano e às leis, praticados por integrantes do poder que deveria ser imparcial na resolução dos conflitos e zelar pelo bem do cidadão: o judiciário.

É só pra dizer que há muito tempo alguns integrantes desse Poder vêm ejaculando incoerências na cara da sociedade, da mesma forma como foi feito há uma semana, mais precisamente no dia 29 de agosto, quando um cidadão, em São Paulo, ejaculou no pescoço de uma mulher dentro de um ônibus, e mesmo tendo sido preso em flagrante foi solto porque um juiz entendeu que houve apenas uma importunação ofensiva ao pudor, não tendo gerado constrangimento ou qualquer tipo de violência à vítima. Quer dizer, desta vez, nenhuma brecha jurídica foi encontrada para poder criminalizar o ato, e o pior, a sentença minimizou a dor, a vergonha, a humilhação sofrida pela vítima. Ah, mas a vítima era o que mesmo? Uma mulher!

Portanto, pra que prender o cara? Foi só um momento de descuido dele, o 17° momento de descuido desde 2009, afinal de contas, há algum tempo ele comete crimes sexuais, porém, esse histórico não foi levado em consideração pelo juízo. Não houve constrangimento para ninguém um cara colocar o pinto pra fora, manipulá-lo ao ponto de ejacular em plena luz do dia e dentro de um ônibus coletivo. Creio que não tenha havido constrangimento para ele, e tanto não houve que o ‘cabra’, no dia seguinte, fez a mesma coisa e pior, ainda segurou a vítima para que ela não saísse do lugar. Por este novo ato a criatura ainda está presa, creio que tão somente pela repercussão negativa na mídia que o fato anterior (a liberação dele pela Justiça) causou.

COTIDIANO DIFÍCIL

Casos de violência sexual são cometidos diariamente no país, são violências de todos os tipos, das verbais às que chegam às “vias de fato”, e sabe por quê? Porque o machismo ainda é, infelizmente, enraizado e naturalizado na grande maioria da população aqui no Brasil, onde uma mulher não pode ser bonita, não pode ter corpo legal, não pode estar arrumada, cheirosa, usando vestido longo, calça jeans, short jeans ou mini saia, enfim, vivendo, porque se um tarado passar a mão nela ou a encurralar dentro de supermercado, por exemplo, a culpa vai ser dela, que usou roupa provocante e despertou no cidadão os instintos animalescos não domesticados, mas completamente permitidos.

É horrível a sensação de estar desprotegida e vulnerável mesmo em ambientes públicos. É horrível ser seguida por dez minutos dentro de um supermercado num shopping por um cidadão que você nunca viu, e que se sentiu muito à vontade para segui-la e ficar encarando-a porque nenhum segurança achou que aquela atitude fosse anormal. Sim, passei por isso recentemente. É desconfortável ter que se fazer de surda para tantos despautérios proclamados por estar usando short no meio da coxa; é imoral ter que ouvir ou ler recados escrotos pelo simples fato de ser mulher, com mais de 30 anos de idade e ainda não ser casada, mesmo não tendo dado abertura para tanto. Está puxado ser mulher no Brasil, especialmente para quem não segue o pseudo modelo “bela, recatada e do lar”.

Mas, o que esperar de uma sociedade cujo dicionário possui interpretações diferentes para uma mesma palavra, a depender da letra que esteja no final? Como assim? Vamos lá! Procura a definição para vadio no dicionário e você vai encontrar: “que não tem ocupação, trabalho ou que nada faz; que não se empenha; que trabalha ou estuda pouco”. Agora procura por vadia e você vai achar: “mulher que, sem viver da prostituição, leva vida devassa ou amoral”. Rá! E aí, está bom pra você? E o caminho é sempre ladeira abaixo para nós, mulheres.

Mais um exemplo: ser funkeiro no Brasil é motivo de ostentação, é sinônimo de virilidade, é o cara que pega geral, que sai “cazmina”, que tem dinheiro e fama. Se for uma mulher o discurso muda. A nova polêmica da vez neste quesito foi com a cantora Anitta. Um vereador do Rio de Janeiro – cujo nome não vou citar para não dar mais ibope - perguntou se ela era cantora ou garota de programa, e a classificou como vagabunda de quinta, com direito a textão em pleno facebook. Tudo isso, segundo ele, em defesa da moral e dos bons costumes. Ahã...tô sabendo...

NÚMEROS DA VIOLÊNCIA

São por situações como esta, por opiniões de uma pessoa que influencia muitas outras (afinal de contas, neste caso específico, ele tem uma legião de seguidores por ser destaque em uma igreja evangélica), que a cada dia mais e mais mulheres são hostilizadas, agredidas, violentadas e assassinadas no país, como mostra o Mapa da Violência no Brasil, publicado em junho deste ano. O estudo, feito em parceria com o IPEA, mostra que em 2015 foram 4.621 mulheres assassinadas no país, uma media de 12 por dia. Em Sergipe esse número foi de 70, uma média de seis por mês.

O próprio estudo classifica a situação como grave e evidencia que muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas, pois, em inúmeros casos, “até chegar a ser vítima de uma violência fatal essa mulher é vítima de uma série de outras violências de gênero, como bem especifica a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). A violência psicológica, patrimonial, física ou sexual, em um movimento de agravamento crescente, muitas vezes, antecede o desfecho fatal”, descreve a publicação. Ano passado, a pesquisa “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil” feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para o Datafolha mostrou que 29% das mulheres brasileiras relataram ter sofrido algum tipo de violência.

A mudança não deve ser apenas comportamental, mas mental. A política não dever ser apenas de combate, mas de prevenção. O Estado tem que garantir o que determina a Constituição Federal (condições dignas de sobrevivência) para que as famílias possam ser realmente estruturadas e dar a educação necessária para que os filhos saibam viver em sociedade, respeitando o que é diferente ao seu núcleo familiar. Quem sabe, assim, um dia, não seja mais preciso a gente andar desviando das ejaculações alheias jogadas à nossa cara de tantas formas, inclusive, as literais – infelizmente para algumas vítimas.



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