Sergipano receberá prêmio do Ministério dos Direitos Humanos

13/11/2018


Por Andréa Moura

O que o destino reservaria para um menino de cor negra, de família pobre, que estudou a vida inteira em escola da rede pública de ensino? Talvez, na cabeça de muitas pessoas, a resposta que passe inicialmente, mesmo que de maneira rápida, seja: nada muito interessante! E eu não discordo ou recrimino quem, porventura, tenha pensado assim, até porque, no Brasil, como têm apontado diversos estudos ao longo dos anos, é muito mais difícil para uma pessoa inserida neste grupo social e com estas condicionantes “vencer na vida”. Difícil, porém, não impossível, e uma prova inconteste de que com muita determinação, coragem e fé é possível transpor as adversidades é o Dr. Ilzver Matos.

Aos 38 anos de idade, filho único de um casal cujo pai era pintor de paredes e a mãe, servente, o menino humilde que viveu no Bairro São José quando a região era, na grande maioria, área de mangue, hoje é doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e uma das 48 personalidades escolhidas pelo Ministério dos Direitos Humanos para receber, no dia 21 de novembro, o Prêmio Direitos Humanos 2018. A premiação é um reconhecimento pela atuação relevante para a promoção de direitos em âmbito local, regional e nacional. Sergipano da capital, Dr. Ilzver estudou toda a vida em escola pública, inclusive o curso universitário.

Formado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, fez mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) graças à bolsa conseguida junto à Ford Foundation (Fundação Ford), entidade sediada nos Estados Unidos, mas cujo escritório no Brasil atua com foco na justiça racial e realizando ações para promoção da democracia e igualdade racial. “Apoiamos o surgimento e o crescimento de novas vozes e narrativas poderosas em contextos urbanos e rurais, trabalhando para conectar essas vozes às de outros líderes, movimentos e instituições-chaves da justiça social”, descreve o site da Ford Foundation.

E uma dessas vozes foi a de Ilzver, que desde a graduação milita no campo dos direitos humanos. Naquela época, disse ele, buscava dar sentido ao curso por meio da atuação em comunidades vulnerabilizadas, levando até elas noções de Direito e estimulando a emancipação social progressista a partir de uma educação jurídica popular. “Precisava dar sentido a tudo que estava conquistando, afinal de contas, era um aluno negro, pobre, vindo da escola pública e que estava tendo acesso a um curso que muitos, de onde eu vinha ou com as mesmas características que eu, dificilmente teriam acesso, e que, infelizmente, até hoje, continuam sem ter, por vários motivos”, comentou.

E não tinham acesso mesmo. Em 2000, ano em que Ilver Matos ingressou no curso de Direito da UFS dos 50 calouros, apenas quatro eram negros, e somente dois conseguiram se formar. Ilzver foi um deles, porém, sem não provar de alguns dessabores oferecidos pelo preconceito racial. “Havia uma professora que não conseguia distinguir a mim e a outro colega, mesmo tendo fisionomias bem peculiares, distintas, havendo de comum apenas a cor da pele. Só depois percebi o quanto ela destruía a minha identidade e autoestima. Infelizmente, no Brasil, o preconceito acontece de várias formas, inclusive velado, e somos culturalmente trabalhados para evitar conflitos”, observa o Dr. em Direito.

Logo após o final da graduação, espaço no qual deu início aos debates sobre ações afirmativas, foi coordenar o setor jurídico da Sociedade Afrosergipana de Estudos e Cidadania (SACI), de onde saiu para ir fazer o mestrado. Em seguida veio o doutorado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Neste contexto, ele acabou descobrindo não só uma causa específica pela qual lutar dentro de um leque tão grande que é a área dos Direitos Humanos: a da liberdade religiosa. Ele descobriu, também, onde se encaixaria a própria fé, que seria sob a orientação e proteção dos orixás e guias da Umbanda. Ou seja, mais um estigma que Dr. Ilzver Matos passaria a combater diariamente, o do preconceito religioso, e novamente, sentido na própria pele.

Só que isso, apesar de o incomodar e o indignar, não o paralisa, pelo contrário, serve de combustível diário para a luta em busca da equidade racial e social, agora não só do povo negro, mas também, dos povos de santo, sejam da Umbanda ou do Candomblé. Para ele, a liberdade religiosa no Brasil sempre foi pensada na perspectiva cristã, nunca sobre a cosmovisão das denominações religiosas minoritárias, como as afro-indígenas.

“E assim sempre foi, também, no que diz respeito à separação entre Estado e igreja, pois a sociedade ocidental achava que conseguiria fazer uma cisão total entre eles, promovendo o desaparecimento das religiões ou as limitando ao espaço privado, doméstico. O fato é que algumas denominações religiosas minoritárias sempre sofreram tais restrições e sempre experienciaram a repressão estatal, como acontece com as religiões afro-indígenas, criminalizadas no nosso país por séculos e que, ainda hoje, são vistas com reservas pela população média, o que resulta em episódios de intolerância ou racismo religioso, como apontam as pesquisas”, observa Ilzver Matos.

É contra esses episódios de ódio por causa da cor da pele e do credo religioso que Ilzver atua no campo da justiça social e da liberdade religiosa. As ações desenvolvidas, consultorias prestadas e projetos orientados na área, que foram reconhecidos como precursores na luta por garantia de direitos e respeito para os povos de santo no estado de Sergipe, a exemplo dos projetos “Idará: Construindo cidadania em comunidades de terreiro”; “Oxê: educação, justiça e cidadania”; “Xangô menino: casos de violência à juventude negra de Sergipe” e “Olope Griots: Justiça e Comunicação em Ação”, fizeram com que ele fosse escolhido pelo Ministério dos Direitos Humanos para receber a premiação na categoria “Liberdade religiosa”.

A solenidade de entrega do prêmio, que contará com a presença do ministro Gustavo Rocha, é uma das atividades do governo Federal em comemoração aos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). “A demanda por reconhecimento é uma demanda por consideração, e não por fama ou prestígio. Ser premiado como referência em direitos humanos no Brasil é ter alcançado essa consideração, no sentido de que a minha atuação profissional e social na proteção e promoção dos direitos humanos da população negra, e das religiões afro-indígenas fez e faz diferença para o país. Espero que mais pessoas façam o mesmo em nome de uma sociedade mais livre, justa, solidária e sem preconceitos de qualquer espécie”, declarou o homenageado, que estará, no dia 21 de novembro, ladeado por personalidades bastante conhecidas pelos brasileiros, a exemplo da ministra do STF, Carmem Lúcia Antunes Rocha, e do ministro do STJ, Antonio Herman de Vasconcelos e Benjamin.



Comentários

Sônia Regina de Souza comentou:
estamos juntos parabéns
Gilvan Santos comentou:
Parabéns pela matéria , como sempre impecável na sua função social. E de um sergipano que merece pela sua competência e sua história em defesa dos direitos humanos.

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