Transtorno alimentar: mais casos em mulheres e crescimento entre LGBTs

15/09/2025


Por Andréa Moura

Passava o dia comendo, mesmo sem vontade, e boas quantidades, mas na hora das refeições mesmo, o meu prato era o menor da casa, e eu fazia isso para mostrar a todos que não havia motivo para a minha obesidade. Tenho 1,55 cm de altura e cheguei a pesar 120 quilos”. Esse depoimento é de uma pedagoga aracajuana, de 40 anos de idade, que preferiu não se identificar ao falar sobre a compulsão alimentar desenvolvida na adolescência, mas a quem vamos chamar de Alice.

Esse transtorno alimentar fez com que Alice evitasse sair e estar com pessoas durante muitos anos, para evitar olhares atravessados e julgamentos sobre o peso e consequentemente, a aparência. “Com muita dificuldade me formei, fiz cursos, e consegui trabalhar, mas fora da minha área. Hoje estou muito melhor. Comecei a me tratar, a fazer atividade física, a dançar e consegui perder um pouco de peso”, afirmou. Alice está nos cerca de 70 milhões de pessoas em todo o mundo afetadas por algum transtorno alimentar, segundo aAssociação Brasileira de Psiquiatria (ABP), desordem que tem a maior taxa de mortalidade que qualquer doença psiquiátrica.

Mas, o que são os transtornos alimentares? A médica psiquiatra Ana Raquel Santiago, especialista no tema pelo Ambulim da Universidade de São Paulo há 25 anos, explicou que são doenças psiquiátricas, desordens emocionais onde a relação com a alimentação e com o corpo está alterada, havendo mudança na forma como os alimentos são consumidos, podendo ser com descontrole, ou com extrema restrição alimentar. Os principais transtornos são a anorexia nervosa, a bulimia e a compulsão alimentar.

O Ambulim é o maior centro de tratamento especializado em transtornos alimentares do Brasil, integra o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, e possui a única enfermaria especializada no tema em toda a América Latina. A origem dos transtornos alimentares é multifatorial, e pode estar relacionada a questões ambientais, sociais, familiares e genéticos.

Dra. Ana Raquel Santiago. Foto: arquivo pessoal

Dra. Ana Raquel Santiago aclarou, ainda, que as disfunções alimentares são consideradas problemas de saúde mental porque a prevalência dentro das populações tem crescido ano após ano, sendo graves e potencialmente fatais, sobretudo quando levam o paciente a ter uma restrição intensa da alimentação gerando quadros de desnutrição severa, redução do crescimento em crianças a adolescentes, isolamento social, humor depressivo, rituais obsessivos frente aos alimentos, obesidade e distúrbios metabólicos, entre outras complicações.

Segundo a profissional, é grande a quantidade de mortes relacionadas aos transtornos alimentares e que não são registradas como tal, mas sim como consequências indiretas de problemas clínicos, como complicações cardiovasculares devido à desnutrição ou desequilíbrio eletrolítico (por perda de potássio por vômitos); desnutrição; problemas gastrointestinais; infecções graves; e até mesmo o suicídio, cujo risco de ocorrência é alto em pacientes com transtornos alimentares, em especial, os que desenvolveram anorexia.

A Associação Americana de Psiquiatria afirma que os transtornos alimentares afetam 5% da população. A anorexia e a bulimia nervosas afetam mulheres entre 85 e 95% dos casos, enquanto a compulsão alimentar atinge o gênero feminino em 65% das vezes.

 

“A purgação serviu como uma espécie de catarse”

O advogado Gustavo (nome também fictício porque ele não quis ser identificado no texto), aracajuano de 34 anos, enfrenta transtornos alimentares desde a adolescência. O primeiro manifestado foi o mesmo de Alice, a compulsão alimentar, mas em 2019 a bulimia se revelou. Esses distúrbios provocaram em Gustavo problemas de baixa autoestima e insegurança, entre outros. “Confesso que não consigo descrever outros impactos negativos da doença em minha vida, porque ela se manifestou de forma tão traiçoeira, que realmente não sei descrever muito mais que isso” contou.

Ele disse não saber identificar qual o gatilho responsável pelo surgimento dos transtornos, mas acredita que questões familiares tenham minado um pouco da autoestima, e que a purgação dos alimentos, característica da bulimia, serviu como uma espécie de catarse. Em abril deste ano (2025) ele iniciou o tratamento contra esses distúrbios, e passou a ser acompanhado pela dra. Ana Raquel Santiago, por um psicólogo e uma nutricionista.

“Apesar de ainda ter problemas com compulsão, a purgação dos alimentos diminuiu consideravelmente, pois estou há quase um mês sem vomitar. Quando iniciei o tratamento vomitava quatro vezes por semana, às vezes mais de uma vez por dia. No começo do acompanhamento médico multidisciplinar acreditava se tratar de uma questão meramente estética pelo receio de engordar, mas acredito ser algo mais profundo. Agora entendo que essas purgações/compulsões servem de limpeza para algum mal-estar interno e que ainda estou tentando descobrir qual seja”, analisou o jovem advogado.

 

A busca doentia por corpos magros

Enquanto Gustavo foi levado para as estatísticas de pessoas com transtornos alimentares por questões familiares mal resolvidas, uma grande parte dos que engrossam os números dessa doença mental foi inserida pela obsessão da sociedade contemporânea por corpos magros, pois seriam esses os considerados como ideais e belos.

A médica psiquiatra Ana Raquel Santiago explica que o mundo está cada vez mais pautado pelo desempenho e pela busca da Imagem perfeita, de corpos perfeitos, da alimentação impecável e sem erros, da eterna contagem de calorias. Ela ressalta que toda essa atmosfera é tóxica para pessoas com problemas emocionais, e para os adolescentes que ainda estão no processo de formação da personalidade e da autoimagem, podendo ser altamente influenciados por tudo isso.

Redes sociais têm influenciado em casos de transtornos alimentares

E um fator que tem preocupado ainda mais quem lida com o assunto diretamente, é o poder destrutivo dos ideais de magreza disseminados nas redes sociais, divulgados por influenciadores digitais e por pessoas comuns, que mostram a maneira como se alimentam e muitas vezes incentivam que as pessoas restrinjam a alimentação, ou que ingiram de forma desregulada alimentos ultracalóricos.

“Não há como, no mundo atual, vivermos longe 100% das telas e das influências digitais. Mas precisamos saber filtrar o que acessamos, e o tempo de acesso aos conteúdos ofertados. Quando falamos de crianças e adolescentes nas redes o desafio é ainda maior, pois muitas vezes os pais não monitoram ou fiscalizam o acesso dos filhos ao mundo virtual e aos conteúdos relacionados à alimentação que falei anteriormente”, observou a dra. Ana Raquel Santiago.

A médica psiquiatra contou não haver uma idade ou perfil específico de pessoas mais acometidas pelos transtornos mentais, porém, as mulheres são as mais afetadas, e todos os estudos apontam para a adolescência como a fase em que há o maior risco de desenvolvimento desses distúrbios, quando há mudanças hormonais e corporais nas crianças.

“Também há incidência nos adultos mais jovens, com idade entre 20 e 40 anos, sobretudo nas meninas. Os transtornos alimentares também acometem os homens, porém, em uma frequência menor. Mas é preciso alertar que estudos têm mostrado aumento da prevalência deles na comunidade LGBTQIAPN+, especialmente nos homens gays devido à busca por traços e perfis mais afinados”, alertou.

 

Sobre impactos negativos e tratamento

A especialista no tema frisou que os transtornos alimentares podem impactar negativamente a vida dos pacientes à medida em que propiciam maior isolamento social, como o relatado pela nossa personagem Alice, no início da matéria; redução da autoestima; maior desencadeamento de transtornos mentais associados como depressão, ansiedade, transtorno obsessivo compulsivo (TOC); de personalidade; e o uso abusivo de álcool e outras drogas ilícitas.

“Sem falar no aumento da mortalidade devido às complicações clínicas no caso de desnutrição grave, e dos riscos cardiovasculares quando associados à obesidade mórbida”, relembrou a médica. Dra. Ana Raquel Santiago lamenta que ainda haja resistência, por parte dos pacientes, em tratar o transtorno alimentar com auxílio de um profissional da psiquiatria, uma vez que muitos não acreditam haver problemas na relação que possuem com a comida, e que a magreza não tenha sido incentivada.

“Muitas pessoas realizam comportamentos compulsivos alimentares em silêncio, em segrego. Mas temos percebido que a procura por ajuda tem aumentado, e isso é muito importante”, celebrou a médica psiquiatra. A Associação Brasileira de Psiquiatria afirma que, quando tratados precoce e corretamente, os transtornos alimentares apresentam importante taxa de recuperação. Porém, é importante salientar que são doenças que podem ser reincidentes.

O tratamento para casos de disfunção alimentar é feito por uma equipe multidisciplinar composta por, no mínimo, psiquiatra, nutricionista e psicólogo, que devem atuar visando superar os aspectos subjetivos e emocionais da distorção da percepção da imagem corporal, tentando melhorar a relação dos pacientes com a comida através de tratamento comportamental para controle de impulsos, e dos mecanismos de rigidez cognitiva relacionados aos alimentos.

Quando questionada sobre a idade dos pacientes mais jovem e mais “velho” por ela já tratados com transtorno alimentar, Dra. Ana Raquel informou que o mais jovem tinha 10 anos de idade, e mais velha, 45 anos. Disse, ainda, que os casos mais marcam a história dela enquanto psiquiatra são aqueles em que as pacientes necessitam de internação em UTI, após fazerem restrições alimentares graves.

Crianças devem ser incentivadas a uma boa alimentação

E como os pais devem agir para evitar o surgimento de algum desses transtornos? De acordo com a médica psiquiatra, é importante alertar os pais ou responsáveis que não falem com os filhos questões relacionadas ao corpo ou a partes dele. “O corpo das crianças não deve ser pauta de discussões familiares, elas não devem ser incentivadas a perder quilinhos ou gorduras. O que devem ser incentivadas é a ingerirem uma alimentação equilibrada e a praticarem exercícios físicos, entendendo que as crianças e os adolescentes estão em constante desenvolvimento, e que com isso, há modificações naturais nos corpos.

“Algumas crianças, meninas e meninos, podem ganhar peso por volta dos oito, nove ou dez anos de idade, isso é natural. Mas é claro que os pais devem sempre estar atentos a perdas de peso elevadas e sem motivos aparentes, a alterações do comportamento com isolamento social e recusa a se alimentar em família, pois podem ser sinais de desconforto da criança ou do jovem com o próprio corpo, ou de tentar esconder movimentos/disfunções relacionados à alimentação”, ressaltou a profissional.

 

Conheça os principais transtornos alimentares

Anorexia nervosa: é a recusa voluntária da ingestão de alimentos devido a uma distorção da percepção da imagem corporal, do medo doentio de ganhar peso, e a execução de mecanismos de restrição de aporte calórico que levam a intensa perda de peso e desnutrição.

Bulimia nervosa: pessoas com bulimia nervosa têm também o medo intenso de engordar, e por isso engajam-se em dietas mirabolantes, em geral sem orientação médica, e implementam mecanismos compensatórios inadequados para evitar o ganho de peso, como uso de medicações sem indicação médica; exercício físico em excesso e sem considerar muitas vezes lesões ou esgotamento físico; vômitos provocados e intenso desconforto com a imagem corporal, levando à baixa autoestima e a transtornos psiquiátricos associados, como depressão, ansiedade e transtornos de personalidade.

Compulsão alimentar: é o que está mais associado à obesidade, porém, nem todas as pessoas com obesidade têm compulsão alimentar. Caracteriza-se pela ingestão de alimentos em grandes quantidades com a sensação de perda de controle, mas não há comportamentos compensatórios inapropriados, como no caso da bulimia.

Imagens utilizadas: Banco de imagens Freepik



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